Por Letícia Leite (graduanda em Letras– Pt/Esp pela UFRPE)
O mercado literário, tal qual as formas de produção literária, sempre passou por inúmeras transformações na tentativa de se adaptar às mudanças de configuração e costumes da sociedade. As histórias que eram transmitidas de forma oral, passaram a ser registradas através da escrita, após registradas passaram a ser compiladas e transformadas em livros. Surgiam, então, histórias que já nasciam para serem lidas – não mais disseminadas apenas pela oralidade – e que eram publicadas impressas em jornais e revistas e poderiam vir a se tornar livros. Com o avanço da tecnologia, a disseminação dessas obras impressas foi amplamente facilitada, mas somada à crescente capacidade de exportação e comunicação entre leitores de diferentes partes do mundo, um novo recurso surge: a possibilidade de uma leitura digital.
A popularidade e a adesão das pessoas aos e-books (livros eletrônicos) cresce a cada dia, eles possibilitam uma leitura mais prática e à mão em qualquer momento, além de dispensar o peso e espaço ocupados pelos livros físicos. O mesmo caminho percorreram as histórias em quadrinhos, ou HQs, que passaram a ser publicadas na internet, onde foram chamadas de Webcomics. Quem achou, entretanto, que esse seria o limite, se enganou. Um novo formato, surgido na Coreia do Sul e intitulado Webtoon, apareceu para trazer ainda mais uma forma de produzir e ler.
O termo Webtoon (웹툰) é utilizado para descrever uma espécie de webcomics ou manhwas sul-coreanos, publicados de forma online. Esse novo formato ganhou espaço por volta de 2003, quando o portal web coreano Daum criou um serviço de webtoon, sendo seguido pelo Naver, um dos portais de busca mais popular do país, em 2004. Dez anos depois, em 2014, os dois serviços juntos já tinham publicado mais de 900 webtoons de forma regular e incluindo títulos disponibilizados de maneira gratuita. Com a crescente popularidade do formato e visando uma expansão ainda maior, a partir de 2010, alguns serviços como Tapastic, Spottoon e Line Webtoon começaram a traduzir oficialmente webtoons para o Inglês, o que resultou em um ganho de popularidade ainda maior e mais rápido nos mercados ocidentais.
De início, ao olhar, pode parecer que são apenas quadrinhos, uma única coisa com vários nomes diferentes, mas qual a diferença, de fato, entre os webtoons, os mangás, manhwas ou os próprios webcomics que são publicados também de forma online?
Os mangás são um formato já bem consolidado no mercado literário, tanto japonês, de onde se origina, como internacional. Em “Mulheres mangakás: superando as representações de gênero em mangás shōnen”, Emily Rafany explica de forma clara e simples um pouco mais sobre o que são. Em resumo, além das características visuais típicas, eles são essencialmente feitos para serem publicados de forma física, em preto e branco e lidos da direita para a esquerda. Manhwas (만화) é a forma como são chamados os quadrinhos publicados na Coreia do Sul, uma variação do termo manhua (漫画), em chinês, que se refere também às publicações de mesmo formato, porém chinesas. A semelhança ocorre entre os termos e o formato, todos feitos para serem impressos e publicados de forma física, ou digital mas ainda seguindo a dinâmica de uma obra física.
Diferenciar entre físico e digital pode ser mais fácil, por isso, quando chegamos na diferença entre webcomics e webtoons, as divisas podem ficar um pouco mais difíceis de se perceber em um olhar rápido. Segundo Heekyoung Cho, ““Webcomics” geralmente significa quadrinhos publicados em um site. Mais estritamente, porém, refere-se a quadrinhos especificamente criados e publicados/lançados em uma plataforma de computador”. Entretanto, os webcomics ainda tendem a manter uma lógica organizacional semelhante à dos formatos físicos. Esse modelo, por sua vez, está em constante evolução e pode se distanciar cada vez mais dos moldes físicos em breve, mas, por hora, continua sendo uma distinção significativa entre si e seu parente coreano.
Os webtoons também não surgiram já no formato como temos hoje, eles vieram como uma ramificação dos webcomics, inicialmente pensados no formato horizontal, para a tela de um computador, mas adaptados para vertical com o surgimento e expansão de popularidade dos smartphones. Com a evolução e a proximidade de tais aparelhos ao dia a dia das pessoas, a forma de navegar pela internet também mudou e a rolagem infinita se revelou como um modelo promissor. Essa configuração se tornou cada vez mais popular com o passar dos anos, se tornando, hoje, algo presente entre os aplicativos mais utilizados no mundo como Instagram, Facebook, TikTok etc. Nesse sentido, os webtoons também se adaptaram à tecnologia e, atualmente, essa é também sua característica principal.
O primeiro webcomic coreano que usou o formato vertical foi Pape and Popo’s Memories de Sim Sŭnghyŏn, publicado pelo Daum (portal web coreano) em 2002. Devido à época, a leitura era feita através de computadores e os leitores usavam a roda de rolagem do mouse para ler. O quadrinho que desencadeou a popularidade desse formato de layout vertical foi Sunjŏng manhwa, criado por um artista de webtoon famoso, Kang P’ul, e publicado no portal Daum no ano seguinte, 2003.
Ao se deparar com esse sucesso das produções coreanas, é difícil imaginar que o mercado de quadrinhos coreano já enfrentou uma grande crise. Entre os anos 80 e 90, as histórias em quadrinhos sofreram uma onda de repressão acarretada por uma forte censura coordenada pelos governos militares que lideraram o país naquele período. Sob acusação de serem más influências para os jovens, as histórias em quadrinhos foram proibidas de serem comercializadas, fazendo com que grande parte das editoras fossem fechadas e afetando diretamente a criação e distribuição de conteúdo nesse formato. Lee Chung-ho, presidente da Associação de Cartunistas da Coreia, em entrevista ao KoreaTimes afirma que “a censura foi muito pesada durante os governos militares”. Essa censura gerou uma “demonização” midiática sobre as produções, o que levou o público a seguir no mesmo caminho.
Ainda segundo Lee, “a repressão do governo dos anos 90 foi um golpe decisivo. Os responsáveis pela legislação relaxaram simplesmente porque os cartoons haviam perdido muito de sua relevância como produtos culturais”. Apenas por volta dos anos 2000, quando foram oferecidos como conteúdo gratuito na internet, a leitura de quadrinhos passou a retomar seu espaço e voltar a ser vista como algo comum no país.
Influenciados também por esse período de censura, que reduziu imensamente as produções do gênero no país, uma mudança no mercado e na forma de produção parecia uma boa alternativa de recuperar o tempo perdido. Assim surgiram os webtoons, que conseguiram expandir o mercado, mudaram a forma de produzir, consumir e distribuir quadrinhos, além de um termo que, apesar de ter sido cunhado na Coreia do Sul e ser atrelado às produções do país, foi levado junto com a “onda coreana” ou “Hallyu” para fora de suas fronteiras e vem ganhando cada vez mais notoriedade mundialmente.
Entre as principais características desse formato, temos uma leitura feita da esquerda para a direita (como nas produções ocidentais), são, em sua maioria, coloridos, a dinâmica de ações e diálogos é vertical, por rolagem, havendo separação apenas por capítulos e não por páginas. Alguns chegam até mesmo a contar com trilha sonora.
Outro recurso importante utilizado por essa forma de produção são as “calhas”, espaços em branco que ajudam a ditar o ritmo da narrativa e constroem pausas durante a leitura. As calhas podem ser utilizadas para gerar expectativa e podem ser curtas ou bastante longas e assim demonstrarem também o tamanho da passagem de tempo entre as ações, podendo conter ainda alguns balões de fala ou pensamento das personagens durante essa passagem de tempo. O formato de leitura ajuda ainda a fazer com que o leitor não pegue nenhum spoiler ao desviar um pouco o olhar e acabar vendo as cenas seguintes.
Exatamente por serem feitos pensados para os smartphones, companheiros inseparáveis dos seres humanos nos dias atuais, e pelas características já mencionadas, não utilizadas associadas dessa forma por outros formatos, os webtoons revolucionaram a indústria literária. Ao contrário de como se pode enxergar, eles não devem ameaçar as outras formas de produção, pois cada formato carrega suas próprias características e agrada diferentes públicos e situações. Porém, um fato é que devem se expandir cada vez mais, tendo em vista o meio pelo qual são distribuídos e consumidos e a proximidade desse meio com o dia a dia de grande parte da população mundial.
O crescimento da popularidade dos webtoons pode ser visto, por exemplo, no crescente número de adaptações dos quadrinhos em animações e séries. Na Coreia do Sul, alguns títulos já se transformaram em k-dramas (drama ou novelas coreanas) e empresas internacionais, como a Netflix e a Crunchyroll, já possuem e/ou anunciam lançamentos baseados em publicações famosas desse formato.
Alguns exemplos de K-dramas são “Strangers from Hell”, “True Beauty”, “Hellbound”, “My Id is Gangnam Beauty”, “My Roommate is a Gumiho” e “Sweet Home”, que fizeram sucesso nas telinhas e ganharam essas adaptações televisivas porque já estiveram ou ainda estão entre os mais lidos da plataforma Webtoon, onde são disponibilizados de forma gratuita, um período após sua publicação, ou de forma paga, através de um sistema de moedas, para os leitores que não quiserem esperar. Entre as animações, “Tower of God”, “Noblesse” e “The God of High School” já estão disponíveis na plataforma Crunchyroll. Além desses, inúmeros outros títulos são aguardados pelos fãs como lançamentos para o futuro.
Através desse pequeno recorte, é possível perceber como essa nova forma coreana de produzir quadrinhos, aproveitando o avanço da tecnologia, trouxe para o mercado literário diferentes possibilidades a serem exploradas. Os Webtoons ainda devem se desenvolver mais e ganhar mais espaço, tanto entre leitores como com as adaptações das obras em séries e animações, por isso vale ficar atento desde já e buscar entender esse formato. Além disso, para aqueles que ainda não leram nada do estilo, há obras para todos os gostos, em uma enorme variedade de gêneros. Que tal procurar um título para embarcar nessa onda? Certamente encontrará algo para você!
Referências Bibliográficas
CHO, Heekyoung. THE WEBTOON: A NEW FORM FOR GRAPHIC NARRATIVE. 2016. Disponível em: https://www.tcj.com/the-webtoon-a-new-form-for-graphic-narrative/. Acesso em: 07 jan. 2022.
RICARDO, Jocilene. WEBCOMICS OU HISTÓRIA EM QUADRINHOS: UMA ANÁLISE DA ACES WEEKLY. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/11971/1/JSRicardo.pdf. Acesso em: 07 jan. 2022.
SANTOS, Rodrigo. ORIGEM DOS WEBCOMICS: DA GÊNESE AOS AGREGADORES. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/1asjornadas/q_n_tecnologias/rodrigo_santos.pdf. Acesso em: 07 jan. 2022.
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