Sextou na Ásia

#SEXTOU NA ÁSIA| Mulheres mangakás: superando as representações de gênero em mangás shōnen

Por Emily Rafany (Graduada em Relações Internacionais pela UFGD)

emily.rafany14@gmail.com

Os mangás e seus criadores, os mangakás, formam uma importante parte da cultura japonesa. Essas obras são um dos principais itens de exportação cultural do país, bem como são responsáveis por alimentar a bilionária indústria de entretenimento no Japão, servindo de inspiração para animações, filmes, jogos e até mesmo cafés temáticos. Contudo, apesar da popularidade e do grande número de leitores, os mangás começaram sendo, e ainda são, um campo dominado por homens. As mulheres, na sociedade japonesa, enfrentam grandes desafios no mercado de trabalho, e nessa indústria não é diferente. Contudo, muitas mangakás foram capazes de atingir sucesso, principalmente na subcategoria de mangás shōnen, que tem como público alvo meninos adolescentes. Portanto, torna-se essencial observar a contribuição histórica e a trajetória de mulheres na indústria de mangás e o efeito que essas mangakás tiveram na categoria dos mangás para garotos. 

Esses “quadrinhos japoneses” se distanciam substancialmente de sua contraparte ocidental. Entre as diferenças está a linguagem visual: lidos da direita para a esquerda, com páginas em preto e banco e personagens com olhos grandes e expressivos. Contudo, a principal singularidade dessa indústria no Japão é a segmentação da publicação em grupos demográficos, isto é, divisões voltadas a um público alvo baseado tanto em idade como gênero sexual. A datar dos primeiros passos da indústria, essa divisão influencia tudo, desde a publicidade até o layout das livrarias e a política editorial, sem mencionar o padrão narrativo e o desenvolvimento dos personagens. Assim, os mangás iniciam sua publicação em revistas divididas em pelo menos quatro grandes categorias: shōnen (少年 – voltado para meninos adolescentes), seinen (成年 – voltado para homens adultos), shōjo (少女 – voltado para meninas) e josei (女性 – voltado para mulheres adultas). 

No que diz respeito ao público leitor, não podemos presumir que as revistas divididas em gênero sejam lidas exclusivamente por aqueles a quem têm como alvo principal. Nesse sentido, atualmente, pelo menos um terço dos leitores da revista Weekly Shōnen Jump, responsável por títulos como My Hero Academia e Haikyuu, são garotas, sendo mais do que qualquer outra revista da categoria. Tanto que, atualmente, essa divisão está gradualmente se extinguindo, tornando-se mais uma separação de enredo e temática das histórias. Se por um lado a atribuição de todo um mercado de quadrinhos destinado ao público feminino seja um avanço se comparado com o ocidente, por muitos anos, essa divisão foi responsável por reforçar estereótipos sexistas, principalmente naqueles que tem garotos como público alvo: os shōnen.

Os mangás shōnen são a categoria que atrai mais leitores, seja dentro ou fora do Japão. Mesmo quem nunca leu um mangá do tipo ou tenha assistido sua adaptação em anime, pode reconhecer personagens dos hits mundiais Naruto, One Piece ou Dragon Ball. Essas histórias são, geralmente, centradas em um protagonista masculino em busca de seu objetivo, abordando temas como treinamento, amizade e vitória. São repletos de ação, apresentando lutas físicas de algum tipo ou eventos esportivos. Quanto à autoria desses mangás, ou ela não é pensada ou é tida naturalmente como masculina.

Embora, felizmente, tenha começado a mudar nos últimos anos, algo crucial está faltando nesses mangás shōnen: personagens femininas bem escritas. A maioria dessas histórias são vistas pelo que podemos chamar de “male gaze” ou olhar masculino. O conceito, examinado por Laura Mulvey em Visual Pleasure and Narrative Cinema, explica como as obras de arte e, especialmente o cinema hollywoodiano, exigem que todos os espectadores, independentemente de seu sexo, se identifiquem com o protagonista masculino e adotem o “olhar masculino” dominante que, consequentemente, faz com que a representação de mulheres na arte seja a personificação de um papel passivo e um tanto enfraquecido. Embora o conceito venha do cinema, ele pode ser visto em demasia nos mangás destinados ao público masculino. Eles costumam ter menos personagens femininas bem desenvolvidas e acabam ancorados em arquétipos da representação de gênero como a donzela em perigo e o interesse amoroso. Ao mesmo tempo, essas personagens são hipersexualizadas, hiperfeminizadas e usadas como alvo de piadas inadequadas que, por vezes, envolvem abuso sexual, algo que ficou conhecido no mundo dos animes e mangás como “fan service”. Nesse sentido, podemos afirmar que  as mulheres em mangás shōnen foram tradicionalmente postas de lado e o mundo do mangá ainda não acompanhou os tempos criando personagens femininas que são realistas e simpáticas às suas contrapartes do mundo real, e tão proeminentes e importantes quanto seus co-protagonistas masculinos. 

Esse tipo de representação há muito tempo é alvo de críticas, principalmente pelo crescente número de leitoras de mangás shōnen. Com uma parcela cada vez maior de leitoras, existe uma expectativa de melhor representatividade sem romper completamente com as estruturas do shōnen. Coincidentemente, mangás dessa categoria que foram capazes de retratar representações de gênero não convencionais e personagens femininas bem desenvolvidas foram criados por mulheres. Inclusive, muitos atingiram grande sucesso comercial e foram amplamente aclamados pelo público em geral como InuYasha e Fullmetal Alchemist, que serão abordados adiante.

Em contraposição ao male-gaze dominante, podemos afirmar que muitas dessas autoras aplicam o “female-gaze” ou olhar feminino.  Kathryn Hemmann, em Manga Cultures and The Female Gaze, argumenta que esse conceito, em contraposição ao male-gaze, pode ser usado por escritores e leitores para olhar as narrativas de uma perspectiva que vê as mulheres como sujeitos em vez de objetos ou vítimas passivas. Desse modo, ao aplicar um olhar feminino a discursos que tradicionalmente são dominados por homens, seríamos capazes de abrir novos caminhos de interpretação. Dessa maneira, quando essas mangakás concedem privilégios narrativos às personagens femininas, permitem que se tornem heroínas de suas próprias histórias. 

O coletivo de quatro mulheres mangakás, CLAMP, é um grande exemplo da aplicação do conceito. Elas já publicaram nas quatro maiores demografias e, independentemente do gênero, seu trabalho é caracterizado por suas proeminentes personagens femininas (HEMMANN, 2020). O grupo deturpa a própria noção de gênero demográfico ao escolher como representantes personagens femininas em seus mangás shōnen e seinen. Hemmann, explica como subvertem os tropos sexistas da jovem garota (a virgem objetificada e inocente), bem como a mulher mais velha (a figura da “mãe” vil e sexualmente desperta), respectivamente nas obras Tsubasa: Reservoir Chronicle (2003-2009) e xxxHolic (2003-2011). Além disso, o sucesso do grupo lançou as bases para que mais criadoras empregassem o olhar feminino na indústria de mangás.

 Contudo, antes do grupo ser formado e inspirar demais criadoras a partir da década de 1980, duas décadas antes outras artistas deram os primeiros passos na indústria para que isso fosse possível. O final dos anos 1960 viu o primeiro grande grupo de mulheres mangakás entrar na indústria, ficando conhecidas como o Grupo do Ano 24 (em referência ao ano de nascimento mais comum do grupo). Entre elas estão Yamagishi Ryoko (Arabesque), Ikeda Riyoko (A Rosa de Versalhes), Hagio Moto (A Família Poe) e Takemiya Keiko (Kaze to Ki no Uta) – as fundadoras do gênero “boys love” – e Oshima Yumiko (The Star of Cottonland). Elas criavam mangás shōjo, algo que até então era predominante criado por homens. Foi a primeira vez que mulheres passaram a escrever sobre suas perspectivas para o público feminino. Assim, de acordo com Daugherty (2020), o shōjo foi responsável por abrir as portas para as mulheres no mundo do mangá, além de dar um espaço para descrever como era ser mulher de tal forma que trouxe aos leitores uma sensação de libertação das normas e restrições sociais.

Até a década de 1990, haviam poucos mangás shōnen escritos por mulheres, em grande medida à expectativa de que os mangakás escrevessem dentro de sua demografia. Assim, encontramos mais mulheres que escrevem mangás em revistas shōjo e josei do que shōnen e seinen. No entanto, nas últimas décadas, as autoras de mangás shōnen tornaram-se mais comuns e seus trabalhos frequentemente alcançam grande reconhecimento. Como mencionado, não só muitas aplicaram, conscientemente ou não, o female-gaze, como foram capazes de usar suas experiências e vozes para criar mangás voltados para meninos com melhor representação de personagens femininas, do que significa ser um homem e das relações entre pessoas de todos os gêneros.

O mangá shōnen de maior sucesso criado por uma mulher foi Fullmetal Alchemist (2001-2010) de Hiromu Arakawa. A série já vendeu mais de 64 milhões de volumes, recebeu duas adaptações em anime, dois filmes e vários videogames. A história segue a jornada do “alquimista de metal” Edward Elric e seu irmão Alphonse enquanto procuram pela lendária Pedra Filosofal a fim de trazer de volta os membros (e, no caso de Alphonse, o corpo) que perderam na infância quando tentaram trazer sua mãe de volta dos mortos usando alquimia. A autora prezou muito tempo pela anonimidade, utilizando um pseudônimo masculino (seu nome verdadeiro é Hiromi) e utilizando como autorretrato na comunicação com o público uma vaca de óculos. Se ela escondeu sua identidade por medo de não ser levada a sério como uma autora shōnen, não está claro, mas em declarações à revista francesa Animeland em 2013, Arakawa diz: “Alguns homens são realmente capazes de imaginar personagens sensíveis e complexos, enquanto algumas mulheres são capazes de criar cenas de ação às vezes violentas. Hoje em dia, cada escritor tem a sua especialidade. Não importa se é homem ou mulher.”

Além da narrativa e das incríveis cenas de ação, um dos pontos positivos do mangá está nas personagens femininas. Elas costumam ser bem equilibradas e dinâmicas, com seus próprios arcos de personagem e objetivos pessoais. Enquanto suas histórias empregam alguns “tropos” de gênero que estão comumente presentes em mangás shōnen, ela também (conscientemente ou não) confronta alguns clichês e os destrói com sua narrativa. Ao fazer isso, ela sutilmente incentiva seus leitores a desafiar os estereótipos sobre as mulheres que eles vêem em outras ficções ou mesmo na vida real. 

Ter personagens femininas bem escritas e realistas em um shōnen não é um sinal de que as autoras que criaram esses personagens tiveram influência no gênero como um todo, mas sua popularidade significa que seus leitores – principalmente jovens garotos – são receptivos a esses personagens que rompem com a representação tradicional dos papéis de gênero com personagens femininas bem desenvolvidas que fogem dos estereótipos tradicionais do mangá shōnen das personagens hipersexualizadas e sem agência. Desse modo, abriram caminho para o melhor tratamento de personagens femininos e exame mais aprofundado dos papéis de gênero. 

É evidente que simplesmente ter mulheres fazendo mangás não é suficiente para resolver o sexismo que permeia os mangás e a sua produção. Só porque esses títulos são criados por mulheres não significa, necessariamente, que eles sejam livres das personagens femininas excessivamente sexualizadas, donzelas em perigo e assim por diante. A título de exemplo, em Magi: The Labyrinth of Magic (2009-2017), criado por Shinobu Ohtaka, existem personagens femininas tão ou mais fortes que os masculinos, mas que são alvos constantes de piadas sexuais e gordofóbicas. Embora nem todos os mangás escritos por mulheres escapem dos estereótipos de gênero, não só há uma chance maior de ver uma representação positiva das mulheres em mangás voltados ao público masculino se for criado por uma mulher, como essas autoras são mais propensas a criticar ou subverter a estrutura dominante de gênero do que os autores do sexo masculino, como evidenciado acima com o grupo CLAMP e Hiromu Arakawa.

Personagens femininas bem escritas não são o único aspecto que essas mangakás trouxeram, muitas delas incorporam em seus mangás shōnen elementos tradicionais do shōjo. Esses mangás geralmente são sobre desenvolvimento interior da protagonista e suas interações com o meio ao seu redor, desse modo, alguns dos principais elementos são personagens femininas como protagonistas ou co-protagonistas e, por consequência, com agência geralmente associada aos heróis dos shōnen; foco no desenvolvimento pessoal da jovem protagonista, subvertendo noções sexistas de tropos encontrados tipicamente em shōnen; presença feminina e masculina mais balanceada e ênfase nos relacionamentos, sejam românticos ou não. Essas características não só diferenciam seus trabalhos dos shōnen convencionais, como são capazes de deixar a demografia mais complexa e mais atraente para um público que está cada vez mais diverso. Nesse sentido, podemos destacar Kore Yamazaki em The Ancient Magus Bride (2013-2022~), Adachitoka em Noragami (2011-2022~) e, claro, Rumiko Takahashi.

Entre as mangakás que tiveram proeminência nesse quesito estão Rumiko Takahashi, que incorporou esses elementos em várias de suas obras, mas que se destacam principalmente em InuYasha (1996-2008). Apesar do título do mangá se referir ao meio-youkai InuYasha, acompanhamos a jornada de Kagome, uma garota colegial que descobre ser capaz de viajar entre o Japão moderno e o Japão do período Sengoku (1467-1615). Os dois embarcam em uma aventura para reunir os fragmentos da Jóia de Quatro Almas, um poderoso artefato capaz de fortalecer youkais, ao mesmo tempo que devem lidar com suas diferenças. Na série não só acompanhamos o desenvolvimento da Kagome, como nos é apresentado uma miríade de mulheres complexas e multidimensionais, além de ser um bom exemplo de equilíbrio entre ação e romance.

Apesar dos exemplos acima, de crescimento nesse ambiente tradicionalmente masculino, essas mangakás ainda são poucas e enfrentam barreiras à sua inserção. Os mangakás, em geral, prezam por sua privacidade, mas as criadoras de mangás para meninos tem um motivo a mais para isso: a estigmatização. Apesar de vários exemplos de sucesso, ainda há pessoas que acreditam que mulheres não conseguem escrever boas histórias destinadas ao público masculino ou boas histórias de ação, o que acaba por gerar uma resistência por parte de leitores e editores. Como consequência, muitas mangakás utilizam pseudônimos e escondem sua identidade. Nesse sentido, já especularam se a pessoa que criou o sucesso mundial Kimetsu no Yaiba (Demon Slayer) é não-binária ou do sexo feminino por não ter revelado seu gênero e utilizar pronomes neutros. Só a possibilidade de ser uma mulher escrevendo esse mangá shōnen gerou uma série de comentários negativos por parte dos leitores japoneses. Por conta disso, é possível especular que existam muitas mulheres produzindo títulos sem sabermos quem realmente são. 

Embora os mangakás sejam os responsáveis tanto pela arte quanto pelo desenvolvimento da narrativa, outros fatores influenciam, e por vezes, limitam o processo criativo da produção de mangás, sendo o principal deles a relação dos editores com as artistas. A indústria atrai muitos jovens que amam mangá e desejam fazer parte de sua produção, mas não é necessariamente uma ocupação bem paga e apenas alguns deles têm sucesso como artistas. Artistas profissionais geralmente criam mangás junto com seus editores, a maioria dos quais são homens contratados por editoras e que participam do processo criativo. Eles têm o poder de exercer influência nas decisões sobre o conteúdo, dando ideias sobre um enredo, personagens e histórias. Hiromu Arakawa em entrevistas afirmou querer a introdução de mais personagens femininas, algo que foi barrado pelos editores. 

Um passo qualitativo nesse sentido seria a inserção de mulheres como editoras, contudo é uma área ainda difícil de adentrar. Nesse sentido, em 2019 a Shueisha, editora da revista Weekly Shōnen Jump, gerou controvérsia sobre o assunto. Em visita a uma universidade, uma estudante perguntou se mulheres podiam ser editoras na revista, ao que responderam que seus editores deveriam “entender o coração dos garotos”. Isso gerou uma série de debates sobre a inserção feminina na indústria de mangás, principalmente nos mangás shōnen, já que o mesmo cenário não se repete na publicação de mangás shōjo, que tem a maioria de seus editores do sexo masculino. 

No entanto, apesar dessas dificuldades, essas mulheres demonstram que é possível escrever boas histórias, com personagens femininos e masculinos complexos em mangás shōnen e ainda terem sucesso comercial. Além disso, as obras mostram o potencial dos textos em moldar e contestar ideias sobre representação de gênero dentro de uma categoria que ainda é dominado pela masculinidade ao mesmo tempo que atrai um público amplo e diversificado. Leitores de todos os gêneros podem encontrar apelo em mangás direcionados ao público masculino que contam com personagens femininas bem escritas e personagens masculinos que fogem de uma masculinidade tóxica. Tudo isso mostra que, por mais que o marketing do mangá tenda a ser baseado no gênero, o talento para contar diferentes tipos de histórias não conhece tais fronteiras. 

Referências

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