GT de Gênero e Sexualidade e GT de Tradução | Curadoria de Assuntos do Japão
Redação: Pedro Malta Chicaroni
Revisão: Amanda de Morais Silva, Felipe Medeiros e Suéllen Gentil
Em celebração ao Mês do Orgulho LGBTQIA+, o GT de Gênero e Sexualidade e o GT de Tradução da Curadoria do Japão da CEÁSIA prepararam a publicação de textos especiais sobre figuras emblemáticas da história das dissidências sexuais e de gênero no contexto japonês. Para abrir essa série de textos, trataremos da vida e da prolífica carreira de Akihiro Miwa (1935- ).
Ao observar Akihiro, precisamos expandir nossa perspectiva para melhor compreender a multiplicidade e o dinamismo da sua expressão de gênero e de sua sexualidade. Essa expansão se mostra necessária devido à tendência do discurso corrente de depender do uso de categorias amplas para retratar o não-normativo no campo do gênero e das sexualidades. Quando falamos de uma pessoa como Akihiro, que se faz alheia a esses discursos, gera-se uma curiosidade relativa a como enxergá-la a partir das categorias de gênero conhecidas, mesmo apesar das possibilidades de não-definição e de individualização da experiência Queer que os estudos de gênero nos oferecem. Para bem apreendermos a vivência e a obra de Akihiro, precisamos nos afastar dessa curiosidade que, em seu caso, não se mostra uma forma propícia de abordagem. Não foram poucas as tentativas de situar Akihiro dentro da terminologia Queer de uso corrente, desde Sister Boy1 à Mulher Trans, passando por Neo-Onnagata2 e Drag Queen. Todas essas hipóteses parecem em nada ter chamado a atenção de Akihiro, que sempre se manteve indiferente a essa dificuldade terminológica. Optamos neste texto evitar pronomes pessoais para se referir a Akihiro, tentando ao máximo replicar uma relativa neutralidade de gênero que a língua japonesa permite. Utilizaremos termos que denotam gênero apenas em citações que os empreguem.
Para aqueles que precisam de uma definição mais precisa para a expressão de gênero de Akihiro, deixamos as palavras Jakuchō Setouchi (1922-2021), monja budista e escritora, ao apresentar Akihiro Miwa, de quem ela era próxima, em uma de suas palestras:
Hoje temos conosco uma pessoa especial. Sabe, Kannon3 não é nem homem, nem mulher. Certo? Bodisatvas não têm gênero. Sendo assim, hoje está aqui Kannon em vida. Pode vir, Kannon! (SETOUCHI, 2015)
- A aparição de Obake4 em Ginza: “O Sister Boy” do Gin-Pari
Em torno do ano de 1956, começaram a circular diversos rumores sobre um inusitado acontecimento nas ruas do bairro de Ginza, em Tóquio. Diversos pedestres relataram ter testemunhado a passagem de uma figura elaboradamente maquiada, vestida por inteiro de roupas de seda roxa e que caminhava cantarolando. A extravagância desta cena levou alguns transeuntes a se juntarem a essa caminhada, sendo levados nesta espécie de marcha por Ginza até o Gin-Pari (Paris Prateada), uma casa de shows em estilo cabaré da região. O evento ganhou certa notabilidade na mídia, chegando a ser citado em jornais e revistas de publicação semanal. Uma dessas notícias relatava que “havia uma linda Obake à solta por Ginza”. Essa foi uma das primeiras grandes aparições na imprensa da época de Akihiro Maruyama, que hoje conhecemos como Akihiro Miwa, um prenúncio da popularidade que obteria no ano seguinte, com seu primeiro grande hit.
Maruyama começou sua carreira musical em 1952, ao fazer a abertura de um show da ex-integrante do renomado teatro musical feminino Takarazuka Revue, Kaoru Tachibana (1912-1963). A cantora foi um dos nomes principais da popularização do gênero Chanson no Japão, e é sob recomendação dela que Akihiro é aceito no Gin-Pari, primeiramente enquanto aprendiz, mas sua estreia como profissional ocorreu pouco depois, em 1954. No ano seguinte, 1955, devido à popularidade crescente de novas casas de show da região, o Gin-Pari estava passando por uma crise financeira e possivelmente precisaria encerrar suas operações. Neste contexto de dificuldade, Akihiro se volta para a cultura dos salões da Belle-Époque francesa, buscando recriar seu clima de prosperidade no Japão do pós-guerra. Tendo em mente referências diversas como os deuses dos mitos gregos e os furisode5 dos jovens do período Edo e do período Azuchi-Momoyama6, Akihiro buscou desenvolver um estilo andrógino de vestimenta que mesclasse referências da cultura japonesa com a moda ocidental (KAMATA, 2009). Seu intuito principal era contrariar a sobriedade que dominava a cultura do pós-guerra, dando destaque ao aspecto da performance e do espetáculo em shows mais suntuosos. A marcha por Ginza narrada acima é o primeiro resultado desta nova empreitada de Akihiro em sua carreira.
É em 1957 que a popularidade de Akihiro aumenta consideravelmente devido à sua
versão japonesa da canção “Mé Qué, Mé Qué”, originalmente interpretada pelo cantor francês Joe Dassin (1938-1980). A versão de Akihiro foi muito famosa, rendendo-lhe shows lotados e destaque na mídia. No mundo da Chanson japonesa, dominado pela influência do Takarazuka, cujo lema era “de forma pura, correta e bela”, a versão de Akihiro de “Mé Qué, Mé Qué” foi revolucionária em seu uso de linguajar cotidiano e vulgar na letra, que descreve a relação entre um marinheiro e uma prostituta em uma cidade portuária (SATŌ, 2017).
A popularidade crescente de Maruyama levou a polêmicas em jornais, que veicularam opiniões diversas sobre Akihiro. Na edição de 2 de Junho, o Semanário Yomiuri descreve que Akihiro “vestia pantalonas de seda violeta, uma camisa de seda branca rendada e um paletó de casimira preto. Sobre o cachecol de seda branca, um rosto com maquiagem intensa, grandes olhos sombreados e lábios vermelhos” (KAMATA, 2009). Além disso, afirmam que “Akihiro Maruyama provoca três incertezas: sua idade, sua nacionalidade e seu gênero”. Já o Semanário Shinchō de 29 de Julho não foi tão neutro, afirmando que sua “combinação de um blusa branca com ares de Grécia e uma meia-calça preta era o mau gosto encarnado” e que Akihiro “tinha originalidade, mas era vulgar demais”. Outras publicações chegaram a afirmar que Akihiro “não deveria ser bom filho” e que “parecia uma pessoa sem amigos” (KAMATA, 2009). O escritor e futuro governador de Tóquio, Shintarō Ishihara (1932-2022), que estava no ápice de sua popularidade devido à adaptação para o cinema de um de seus livros, chegou a afirmar: “Eu odeio konnyaku7 e os okama8 , me dão calafrios” (KAMATA, 2009).
2. O Nascimento de Shingo Maruyama, Nagasaki 1935
Foi na cidade de Nagasaki, em 15 de maio de 1935, onde nasceu Shingo Maruyama, que depois adotaria o nome artístico Akihiro Miwa. Os pais de Shingo eram donos de um café em estilo ocidental, que ficava em um dos distritos de prazeres mais antigos da região, o distrito Maruyama, que existia desde meados do século XVII. A sua mãe biológica, proprietária do café, veio a falecer quando Shingo tinha apenas 3 anos de idade. Seu pai se casou novamente pouco depois com uma costureira formada em um instituto de Corte e Costura em Xangai, que era versada tanto na produção de roupas ocidentais quanto de vestuário tradicional japonês. As vestimentas dessa sua mãe de criação parecem ter sido influentes no desenvolvimento do senso estético de Akihiro, que já narrou suas memórias destes “vestidos feitos a mão em tecidos pomposos como o tafetá e o crepe da China” (MIWA apud SATŌ, 2017).
Antes da Segunda Guerra, a cidade portuária de Nagasaki era um dos centros comerciais mais importantes do Japão. Historicamente, foi uma cidade japonesa internacionalizada devido à sua localização privilegiada, que a tornou essencial para o desenvolvimento das relações comerciais entre o Japão e outros países. A cidade já tinha grande contato com o exterior mesmo durante o período pré-moderno, quando recebia embarcações da China, Coreia, Portugal e da Holanda. Esse clima de internacionalização apenas cresceu após a restauração Meiji e a abertura dos portos japoneses para outros países do Ocidente. É nesse contexto que Shingo viveu seus primeiros anos de vida, experimentando um pouco desse influxo cultural na próspera Nagasaki do entreguerras.
Com o início da guerra do Pacífico (1941-1945), o acesso ao oceano, que nos tempos de paz havia feito da cidade um centro cultural, tornou-a um ponto estratégico importante para as tropas japonesas. Nesta Nagasaki militarizada, o sentimento xenófobo imperava, o que levou filmes e músicas estrangeiros a tornarem-se mal vistos e de difícil acesso. O clima de violência e opressão na cidade chegou ao ponto em que soldados batiam em mulheres que se vestiam de forma chamativa e levavam pessoas para interrogatórios por ouvirem música (SATŌ, 2017).
Em fevereiro de 1945, a madrasta de Akihiro faleceu de causas naturais agravadas pelo estresse da condição da guerra. Cinco meses depois, Nagasaki foi atingida pela bomba atômica. Akihiro, seu pai e seus irmãos sobreviveram, porém tiveram de lidar com a perda de todos seus familiares por parte de mãe. As experiências do período de guerra levaram Akihiro a desenvolver uma aversão pelo militarismo e a adotar uma postura pacifista, que é tema de seu livro de 2005, Sensou to Heiwa Ai no Messeeji (Guerra e Paz: Uma Mensagem de Amor).
Alguns anos após o fim da guerra, Maruyama pediu permissão a seu pai para cursar o ensino médio em Tóquio, onde se matricularia em segredo em uma escola de música, na qual cursou apenas dois semestres. Aos dezesseis anos, começou a trabalhar em um bar voltado para o público gay, onde conheceu Yukio Mishima (1925-1970), com quem criou uma relação de amizade e, futuramente, de colaboração profissional.
3. Outras Faces de Akihiro – O Teatro e o Cinema
Além de sua carreira na música, Akihiro também teve muito sucesso no teatro. Dentre as diversas produções das quais participou, devemos destacar a peça Kegawa no Marie (Marie do Casaco de Pele), dirigida e escrita por Shūji Terayama (1935-1983), que foi encenada pela primeira vez em 1967. Terayama foi um dos grandes nomes do teatro do pós-guerra juntamente com sua trupe de teatro Tenjō Sajiki, que alcançou notoriedade internacional e é considerada pioneira no cenário do teatro do pós-guerra japonês. O papel da protagonista foi dado a Akihiro, para quem a personagem fora concebida.
Com o sucesso de Akihiro em Kegawa no Marie, Mishima lhe pede que protagonize sua adaptação para o teatro de Kurotokage (Lagarto Negro), narrativa do renomado escritor de mistério Edogawa Ranpo (1894-1965). A peça já havia entrado em cartaz antes, em 1962, tendo sido protagonizada pela atriz Yaeko Mizutani (1905-1979), mas, depois de sua saída do elenco, demorou a retornar aos palcos devido à dificuldade de encontrar um substituto para Yaeko. A peça veio a ser reencenada com Akihiro em 1968 e tornou-se o papel mais marcante de sua carreira. O sucesso desta segunda representação foi tamanho que, ao fim da temporada, foi feita uma apresentação especial da peça no Kabukiza, um dos mais prestigiosos teatros de todo o Japão (TOYODA, 2013). Na peça, Akihiro interpreta o papel da Lagarto Negro9, uma criminosa obcecada por beleza que tenta sequestrar a filha de um magnata. Devido à sua popularidade, Akihiro revisitou esse papel diversas vezes, reencenando a peça mesmo depois da morte de Mishima. A última representação da peça que contou com a sua participação foi no ano de 2015.
Akihiro já havia participado de alguns filmes em papéis pequenos, mas “Lagarto Negro” rendeu-lhe seu primeiro grande papel no cinema. Em 1968, no mesmo ano em que protagoniza a peça pela primeira vez, Akihiro estrela no filme Kurotokage, dirigido por Kinji Fukasaku e baseado na versão para teatro de Mishima. O filme também conta com a participação especial do autor em uma das cenas. Em 1969, Fukasaku dirigiu outro filme que contava com Akihiro no papel principal, Kurobara no Yakata (A Mansão da Rosa Negra). Miwa também tem um papel de destaque no filme Nihonjin no Heso (O Umbigo dos Japoneses) de 1977, em que interpreta um papel masculino. O filme é um musical cômico que conta com direção de Eizō Sugawa (1930-1989) e é baseado em uma peça de Hisashi Inoue (1934-2010), um dramaturgo famoso da época. Mais recentemente, Akihiro trabalhou na dublagem de alguns filmes animados, dando voz à Moro em Mononokehime (Princesa Mononoke) de 1999, à bruxa de Hauru no Ugoku Shiro (O Castelo Animado) de 2004, e a Arceus em um dos filmes da franquia Pokémon.
Para além da atuação, Akihiro também escreveu diversos livros de não-ficção. O primeiro e mais famoso deles é o Murasaki no Rirekisho (O Currículo Roxo) de 1968, que é uma espécie de autobiografia. O livro teve inúmeras reedições desde então, mas sua primeira edição continha um texto de apresentação feito por Mishima. Entre os anos de 2003 e 2020, Akihiro também apresentou um programa de rádio intitulado Barairo no Nichiyōbi (Domingo Cor de Rosa), em referência ao nome em japonês da música La Vie en Rose, hit de Edith Piaf que também fazia parte do seu repertório de Chanson.
Do frisson provocado em sua aparição intrigante em Ginza, passando pelas performances em bares, filmes, teatros, à dublagem e vestimenta, podemos ter uma pista sobre a densidade de competências e a intensidade da vocação de Akihiro. Os artistas do pós-guerra tinham para si a difícil tarefa de reconstruir a sensibilidade de um Japão desestabilizado. Ao longo dos seus quase 70 anos de carreira, Miwa não só participa dessa reconstrução, como se empenha em trazer de volta a extravagância para um país em que o prazer de viver tinha se tornado tabu, delicadamente mesclando uma amorosa retomada da cultura japonesa tradicional, com seu olhar mais expansivo para a sexualidade e o gênero, e um apreço pela cultura estrangeira, opondo-se à postura nacionalista que imperou durante a guerra. Ao resgatar este apreço pela cultura estrangeira nos moldes japoneses, Akihiro ajudou a manter vivo um processo de assimilação do que é elemento externo e sua amálgama com a cultura já estabelecida, garantindo o dinamismo e a permanente reestruturação de sua cultura, sem botar em risco sua essência. A busca de um viver indissociável do fazer artístico foi uma das grandes tendências de diversas correntes da arte do século XX, mas dentre aqueles que tentaram essa aproximação, foram poucos os que verdadeiramente viveram sua arte e compuseram suas vidas à maneira de Akihiro, que deu à sua arte a importância de seu viver, e conferiu ao seu viver a liberdade do seu criar.
NOTAS DE RODAPÉ
1Palavra usada para descrever homens femininos ou homens gays. Começa a ser usada em torno do mesmo momento em que Akihiro ganha notabilidade na mídia.
2Termo que descreve os atores, normalmente jovens garotos, que fazem papéis femininos nas peças de Kabuki.
3Bodisatva associado à compaixão, Kannon é muitas vezes representado enquanto figura feminina, apesar de à rigor transcender os gêneros assim como afirma Setouchi.
4A palavra Obake pode ser traduzida literalmente como fantasma, monstro ou aparição. Entretanto, mais precisamente indica o ser sobrenatural que toma a forma física de outro, dissimulando sua verdadeira forma. A palavra está relacionada ao verbo Bakeru de transformar-se. O mesmo ideograma de Obake e Bakeru também é utilizado na palavra para maquiagem, Keshō.
5Vestimentas japonesas com mangas alongadas. Na ilustração do link, vemos alguns homens mais velhos sendo servidos por diversos jovens trajados em furisode, na ocasião de um banquete em celebração ao outono. A ilustração em questão é a décima parte de uma série de doze ilustrações de costumes sazonais, em que cada uma representa um dos meses do ano. A série é intitulada Jūnikagetsufūzokuzu, do artista Mitsuyoshi Tosa e data do período Momoyama (Mori, 2008).
6Ao referenciar as vestimentas dos garotos jovens da época, conhecidos como wakashu ou koshō, Akihiro está associando-se ao tipo de beleza sem gênero que era vista nesses meninos, que eram os receptores do Nanshoku, amor homosexual entre homens.
7Alimento gelatinoso produzido a partir de uma espécie de batata, muito utilizado em ensopados, como o Oden.
8Termo derrogativo utilizado para se referir a homens homossexuais, Drag Queens e até mesmo mulheres trans.
9A alcunha faz referência ao lagarto que a personagem tem tatuado em seu braço esquerdo.
REFERÊNCIAS
Gō, Satō. “Miwa Akihiro to ‘Yoitomake no Uta’” (Akihiro Miwa e a Canção dos Yoitomake). Tóquio: Bungei Shunjū. 2017.
Kamata, Tōji (org.). “Miwa Akihiro to Iu Ikikata“ (O Estilo de Vida Akihiro Miwa). Tóquio: Seikyūsha. 2009.
Mori, Rie. “Buke no Kimono” (As Vestimentas da Classe Guerreira). Sen’i Gakkaishi. Quioto, v. 64, n. 6, p. 190-191, 2008.
Setouchi, Jakuchō; Miwa, Akihiro. Palestra proferida em Agosto de 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=USs0OH1VQV4. Último acesso em: 07 jun. 2022.
Toyoda, Masayoshi. “Ōra no Sugao: Miwa Akihiro no Ikikata” (A Verdadeira Face da Aura: O Estilo de Vida de Akihiro Miwa). Tóquio: Kōdansha. 2013.
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