ELIC | Curadoria de Assuntos do Japão
Redação: Amanda de Morais (amndmorais@gmail.com) e Sátiro (satirorayane9@gmail.com)
Revisão: Camila Machado (camila.machado712@gmail.com), Patrícia Milet (miletpati@gmail.coml) e Suéllen Gentil (suellen.gentil@gmail.com)
A discussão a respeito dos papéis de gênero ao longo da história do Japão tomou rumos diversos na construção de uma identidade feminina e de uma identidade masculina que destoavam das estabelecidas pela ótica ocidental nos sistemas de sexo e gênero. Situando-se nos períodos da Era Sengoku (1560-1603) e Tokugawa (1600-1868) essas relações ganharam diferentes roupagens no imaginário social no que tange ao tratamento da sexualidade e das relações interpessoais entre homens e mulheres.
A representação das relações entre homens através da produção midiática popular japonesa também não passa despercebida. Interessante destacar as sutilezas com que as nuances de gênero e sexualidade são retratadas no cenário imagético de animações e mangás. É nesse sentido que se voltam os olhares à animação Yasuke, que oferece minúcias aos olhares mais atentos do público quanto ao amor homoafetivos e às relações íntimas entre homens das chamadas classes superiores do Japão, isto é, nobres e guerreiros samurai no período do Medievo japonês.
O “medievo japonês” e as relações de gênero
No período por volta dos anos 1300 a 1870, influências do Confucionismo, promovido por exemplo por parte do governo no período do Shogunato Tokugawa (1853-1867), contribuíram para a consolidação do imaginário japonês acerca da diferença entre sexos, de modo a enxergar a mulher ocupando um status inferior ao homem, como se observa, por exemplo, em passagens do texto Onna Daigaku (ou Grande Ensinamento para Mulheres) de 1716 (HENSHALL, 2008, p. 89; HASTINGS, 2007, p. 373).
Nessa obra, pregavam-se as “cinco doenças da mulher”: indocilidade, descontentamento, calúnia, inveja e parvoíce, fundamentos esses que justificariam o conceito depreciativo para com a figura feminina. Os ensinamentos confucionistas atingiam, com relevante impacto, as camadas sociais que incluíam guerreiros samurais e nobres, definidas como as classes superiores da hierarquia social japonesa, e as quais integravam as mulheres samurai, esposas dos guerreiros (HENSHALL, 2008, p. 89; HASTINGS, 2007, p. 373; HANE, 1998, p. 5-6).
Nesse sentido, a imposição rígida de uma relação que, aos nossos olhos estrangeiros, pode ser interpretada como de subserviência da mulher para com seu marido atingia os direitos – ou a falta deles – que a mulher detinha em comparação ao homem, como a privação de direitos de propriedade. Por consequência, as relações interpessoais, incluindo-se as sexuais, que podiam ser estabelecidas pelos homens e pelas mulheres, viam-se afetadas, isto é, enquanto aqueles gozavam de liberdade sexual, essas deveriam manter-se fiéis aos seus pares (HANE, 1998, p. 6).
Nessa perspectiva, enquanto a primogenitura e a demonstração de afeto entre homens e mulheres, bem como a liberdade de associação de mulheres separadas eram parte do padrão de sociabilidade dos citadinos mais ordinários, valores confucionistas ensinavam modelos familiares baseados na liderança masculina para famílias localizadas mais ao topo da hierarquia japonesa. Tal configuração, no entanto, mais ao longo do período Tokugawa tardio, passou a carregar influências para toda a população, conforme a autoridade da classe samurai foi perdendo distinção na sociedade e sendo dissolvida (HANE, 1998, p. 6).
Com essa normatização da divisão sexual, a consciência acerca da conceituação de relações heterossexuais e homossexuais tornaram-se mais nítidas, direcionando o significado das manifestações da sexualidade de acordo com uma lógica oposicional homem-mulher (SMITS, 1997)1. Ainda, curiosamente, não se pode afirmar categoricamente que tal diferenciação no sistema sexo/gênero se deu no âmbito de uma percepção diferencial de orientações psicológicas masculinas e femininas. Isto é, a inteligibilidade de dissemelhanças entre homem e mulher partia especialmente da observação do mundo físico, material, a saber, de aspectos culturais como vestimenta, adornos, penteados. Isto pois, mesmo biologicamente, esses contrastes sexuais não eram intensamente percebidos em uma visão fisiológica no que tange às características sexuais secundárias, tal como demonstram peças da Shunga2, manifestação japonesa da arte erótica, que acentua marcadores sexuais como genitais e órgãos reprodutivos. (HENSHALL, 2008, p. 91; SMITS, 1997).
Yasuke e o amor homoafetivo
O conceito depreciativo que os samurais desenvolveram acerca das mulheres moldou uma forma de comportamento a tal ponto de sentirem-se mais confortáveis mantendo relações de cunho homoafetivo – cuja dinâmica, no entanto, vale salientar, não se iguala aos padrões de homoafetivos considerados atualmente. Conforme afirma Henshall (2008, p. 89), apesar de a ideologia confucionista não aprovar, de fato, relacionamentos homossexuais e a homossexualidade em si, o xogunato estava particularmente predisposto a ser tolerante, porque, no caso do Japão, a homossexualidade masculina refletia o estatuto social, isto é, o parceiro ativo representava sempre a classe mais alta.
Tais relações podem ser exemplificadas pelo que se retratou na animação Yasuke no que concerne, especialmente, os personagens de Oda Nobunaga, um dos grandes daimyo do período Sengoku (1467-1615), e Mori Ranmaru, seu criado. Apesar de não haver documentos oficiais que atestem o relacionamento entre tais personagens históricos, não é de todo ficcional retratar relacionamentos homossexuais entre figuras de poder do Japão e seus criados e vassalos. Ainda, é interessante pensar nas escolhas narrativas do relacionamento ficcional da animação, tendo em vista a retratação de certo apelo à liberdade individual no que concerne a expressão da própria sexualidade, frente a contragostos dos integrantes da própria classe nobre japonesa.
A configuração da homossexualidade, no entanto, não obedece aos sentidos do nanshoku3. Enquanto a homossexualidade tem suas origens de “homo” que traz uma ideia de igualdade, o nanshoku, traduzido literalmente como “cores masculinas”, evoca um sentido de reconhecimento da diferença e fascinação pra com o Outro. Isso pode ser presumido como uma das razões pelas quais o nanshoku tem sido tradicionalmente considerado como a contraparte do joshoku, o amor por mulheres, ambos vistos como meios igualmente aceitáveis de obter prazer sexual (SAEKI, 1997, p. 132)
De origem budista, o nanshoku referia-se inicialmente ao relacionamento entre dois monges, normalmente, um mais novo (chigo) seria acolhido sob as asas de um monge mais velho (nenja) até atingir certa idade. O relacionamento era tanto físico, quanto psicológico, de maneira que exaltava-se o prazer de todas as formas (PFLUGFELDER, 2007). Os contornos do relacionamento entre Nobunaga e Ranmaru, nesse sentido, parecem superar definições que se prendem à sexualidade, na medida em que características de uma relação de afeto podem ser interpretadas de suas interações.
Em razão de suas origens, o nanshoku ocupava um lugar diferente no julgamento das ações de um indivíduo, isto é, como ações “certas” ou “erradas”, mas eram vistas sob o prisma da intencionalidade, dos desejos. Nesse sentido, no Japão, nesse período, um homem mais velho ter uma relação afetiva com um mais novo era entendido como um laço cármico positivo entre os dois. Além disso, conforme a relação deveria durar apenas até a fase adulta do mais jovem, o relacionamento adquire um sentido metafísico conectado ao conhecimento da temporalidade da relação e do desaparecer inevitável da beleza (JNÃNAVIRA, 2000).
Os samurai e o amor masculino
Sendo a harmonia e o respeito valores de ordem da filosofia confucionista, e que iriam a contrassenso a relações íntimas entre homens, não representou ela uma corrente hostil em relação às relações sexuais homoafetivas entre homens. Além disso, não obstante a manifestação desses desejos sexuais se voltasse ao âmbito das relações homoafetivas – com amplo grau de diversidade entre indivíduos mais novos e mais velhos, mestres e servos, bem como entre os mais favorecidos e menos favorecidos hierarquicamente – fato é que a tradição nanshoku era também posta dentro do eros bissexual (LEUPP, 1995, p. 94-95).
Afirma Leupp:
Por volta do século XIV, no entanto, os palácios dos governantes militares do Japão estavam se tornando centros de atividade homossexual; os shogun do período Muromachi (1333-1573) estão tão aptos a terem amantes homens quanto os imperadores da Disnatia Han estavam (1995, 27) (tradução nossa)4.
Já segundo Greenberg (1988), samurais costumavam ir para a guerra com um aprendiz, com o qual costumavam também ter relações sexuais. Na literatura, essas relações eram descritas com demasiado romantismo e lealdade. Por exemplo, é possível lembrar um dos grandes escritores japoneses, que também produziu histórias com temáticas homossexuais, Ihara Saikaku (1642–1693):
Filho de um mercador bem sucedido, Saikaku usou seus poderes de observação, bem lapidado após anos de composição poética de haikai, e criou histórias altamente legíveis e visualmente atrativas de desejo e luxúria, honra marcial e justiça (frequentemente de uma perspectiva de lealdade homoerótica entre guerreiros samurai) (TSUTSUI, 2007, p. 128) (tradução nossa)5.
Ihara Saikaku é autor de vários livros que abordam a temática das relações homoafetivas. Em língua portuguesa, o livro Amor entre samurais é uma coletânea de alguns dos seus contos que trata justamente dessa temática, e todos narram relações românticas e/ou sexuais entre homens e que, por vezes, acabam com o Seppuku/Harakiri, o ritual de suicídio comum entre samurais e nobres da época. O conto Todos os Amantes Morrem por Harakiri, por exemplo, traz a história de três homens que se envolvem romanticamente, mas acabam, como diz o próprio título, morrendo ao cometer o suicídio.
Um ponto que favorecia o discurso em torno do nanshoku no seio das relações entre homens samurai consistia, justamente, na falta de mulheres durante os períodos de guerra. Contudo, mesmo em tempos de paz, a concentração da classe em cidades de castelo – assentamentos construídos ao redor de castelos, comuns no período “medieval” japonês – tornava rara a presença de mulheres em seus locais de trabalho. Além disso, conceitos da vida samurai guardavam certa coerência com o nanshoku na medida em que, no ambiente hierárquico rígido dos samurai, a subserviência de homens mais jovens a mais velho era uma das bases da educação e do relacionamento entre indivíduos. Nesse sentido, uma relação entre homens de ordem hierárquica inferior com os de ordem superior iria de acordo com os ideais educacionais de lealdade e respeito a partir dos quais a conduta dos samurai era moldada.
*Este artigo é o último de uma série de três textos que abordam diferentes aspectos
da animação Yasuke.
NOTAS DE RODAPÉ:
1 Documento online não paginado.
2 Traduzido como “spring pictures” ou “imagens da primavera”, representando um eufemismo da estação referenciando a sexualidade.
3 Termo utilizado para referir-se a relações homossexuais entre homens, traduzido como “male colors”, ou “cores masculinas”. Também utilizava-se o termo wakashudō, traduzido como “o caminho do jovem” ou “o caminho da juventude” para referir-se às relações homossexuais havidas entre os guerreiros samurai.
4 “By the fourteenth century, however, the palaces of Japan’s military rulers were becoming centers of homossexual activity; the shoguns of the Muromachi period (1333-1573) were as apt to retain male lovers as the Former Han emperors had been.” (LEUPP, 1995, p. 27).
5 Son of a successful Osaka merchant, Saikaku used his powers of observation, finely honed after years of haikai poetic composition, and crafted highly readable and visually compelling stories of longing and lust, martial honor and justice (often from a perspective of homoerotic loyalty between samurai). (TSUTSUI, 2007, p. 128)
REFERÊNCIAS
GREENBERG, David. The Construction of Homosexuality. Chicago: The University of Chicago, 1988.
HANE, Mikiso. Reflections on the Way to the Gallows: Rebel Women in Prewar Japan. University of California Press, 1988.
HASTINGS, Sally A. Gender and Sexuality in Modern Japan. In: TSUTSUI, William M. A Companion to Japanese History. Oxford: Blackwell Publishing, 2007.
HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Edições 70, 2008.
JÑANAVIRA, Dharmachari. Homosexuality in the Japanese buddhist tradition. 2000. Disponível em: www.talawas.org/talaDB/showFile.php?res=1067&rb=0503.
LEUPP, Gary P. Male Colors: The Construction of Homossexuality in Tokugawa Japan. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1995.
PFLUGFELDER, Gregory M. Cartographies of desire: Male-male sexuality in japanese discourse, 1600-1950. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2007.
SAEKI, Junko. From nanshoku to homosexuality: A comparative study of Mishima Yukio’s Confessions of a mask. Nichibuken Japan Review, v. 8, 1997, p. 127-142. Disponível em: https://nichibun.repo.nii.ac.jp/action=pages_view_main&active_action=repository_view_main_item_detail&item_id=340&item_no=1&page_id=41&block_id=63.
SMITS, Gregory. The World of Sex in Tokugawa and Meiji Japan. 1997. Disponível em: http://figal-sensei.org/hist157/Textbook/ch7.htm. Acesso em 27 nov. 2020.
TSUTSUI, William M. A companion to Japanese history. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2007.
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