Redação: Rafael Cavalcanti Lemos, juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco e pesquisador associado à Curadoria de Assuntos do Japão da CEÁSIA.
Em 31 de março de 1854, encerravam-se com o Tratado de Kanagawa duzentos e quinze anos de política isolacionista japonesa, iniciada um lustro antes que, em 1644, nascesse Matsuo Kinsaku (na antroponímia de seu país, o sobrenome antecede o nome) – transcurso o 37º aniversário natalício, Bashô (i.e. Bananeira, que havia uma perto de sua cabana) o nome literário. Enxertada durante o século XIX na terra em que se põe o sol, a arte tradicional do Japão frutificou a ocidental moderna, cuja origem desvelavam com o epíteto de japonismo os críticos (Philippe Burty, em 1872, o primeiro destes), o qual teve seu apogeu entre 1880 e 1920 na França.
Já em 1604, contudo, registrava o jesuíta (português da noningentenária Sernancelhe) João Rodrigues em sua “Arte da lingoa de Iapam”: “Ha hũa sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai [‘haikai’], de estillo mais baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & este modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pelo segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu [‘tsukeku’ ou ‘estrofe adicional’], & continuar com cinco sete cinco”.
O renga é um encadeamento oral colaborativo improvisado de tercetos alternados com dísticos no qual cada estrofe recolhe uma imagem da anterior, como nos repentes do Nordeste brasileiro. O gênero leve, cômico (em contraposição ao aristocrático), chama-se “haikai no renga”; o poema inicial (de sentido completo), “hokku” e, quando independente, haicai (na ortografia da língua portuguesa) ou (termo cunhado por Masaoka Shiki no fim dos 1800 da Era Cristã) “haiku” (aglutinação de “haikai” com “hokku”), “composto de três versos não rimados, o primeiro e o terceiro de cinco sílabas, o segundo de sete” (Manuel Bandeira).
Como ensina Haroldo de Campos, “[a] inspeção do texto original de alguns haicais […] revela, na sua estrutura gráfico-semântica, a existência de processos de compor e técnicas de expressão […] que só encontram paralelo em pesquisas das mais avançadas da literatura ocidental contemporânea”: a “dimensão visual da poesia japonesa, herdada por via do ideograma, permite-lhe um extremo refinamento de percepção, um grande poder de síntese imaginativa”; “[n]o pensamento por imagens do poeta japonês o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circunstante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível”.
Remendei minhas calças rasgadas e troquei as
tiras do meu chapéu de palha. A fim de
fortalecer as pernas para a viagem, me untei de
‘moka’ [moxa] queimada.
(excerto de “Sendas de Ôku”, diário de viagem
de Bashô, em tradução de Leminski)
Ex-samurai, funcionário público e alfim professor errante de poesia, Bashô “compreendeu que só se deve amar no mundo as coisas belas e passageiras: as flores, as nuvens, o canto das aves. Pegou do seu bastão de peregrino e partiu na alegria de quem não tem nada senão o poder de tirar de uma vida vivida em pureza e fervor a alegria do canto” (Manuel Bandeira). Seguiu, mas atípico, a tradição, fazendo das formas populares de sua época veículo da mais alta poesia: “Não sigo o caminho dos antigos: busco o que eles buscaram.”.
Quis gravar “Amor”
No tronco de um velho freixo:
“Marília” escrevi.
Manuel Bandeira (classificado entre os
“descendentes de Bashô” por Leminski), “Haicai
tirado de uma falsa lira de [Tomás Antônio]
Gonzaga”
“[I]niciador do movimento modernista” no Brasil, Manuel Bandeira foi, sem “o abandono dos ritmos tradicionais”, “quem primeiro entre nós empregou o verdadeiro verso livre” (Sérgio Buarque de Holanda). No poeta recifense via Álvaro Lins o “privilégio […] de exprimir um máximo de poesia num mínimo de palavras”. Em crônica publicada n’A Manhã do Rio de Janeiro em 29 de maio de 1943 (a título de curiosidade, ao lado dum texto de Gilberto Freyre, “A propósito de palavras”), Bandeira declarou-se “muito afeiçoado à minúscula forma fixa da poesia japonesa”, afirmou que “ficar[ia] japonicamente ortodoxo” nos haicais que escrevesse, “não os fa[zendo] rimados”, e deixa conhecer haver tido contato com os elaborados por Bashô (a quem cognominava “mestre dos mestres, o grande, puro, imortal”) por meio não apenas da “Histoire de la littérature japonaise des temps archaïques à 1935” de Matsuo Kuni (citado no periódico como “seu [de Matsuo Kuni] livro sobre a literatura japonesa” e referência desde 1940 nas “Noções de história das literaturas” do pernambucano, então catedrático interino da disciplina no externato carioca Pedro II) senão também do florilégio por este (Matsuo Kuni) e Émile Steinilber-Oberlin intitulado “Haïkaï de Bashô et de ses disciples”, obras cuja versão francesa de cinco poemas Bandeira (republicados em “Poemas traduzidos” os quatro últimos) transverteu ao português, um deles com transcrição fonética (dita “rōmaji”) do japonês ao alfabeto latino: “O outono aprofunda-se: / Que estará fazendo / Agora o vizinho?” ou (nas bandeirianas “Noções”) “Aprofunda-se o outono. / Que faz / O vizinho?” (“Aki fukaki / Tonariwa naniwo / Suruhitozo”) // “Quatro horas soaram. / Levantei-me nove vezes / Para ver a lua.” // “Fecho a minha porta. / Silencioso vou deitar-me. / Prazer de estar só.” // “A cigarra. Ouvi: / Nada revela em seu canto / Que ela vai morrer.” // “Quimonos secando / Ao sol. Oh aquela manguinha / Da criança morta!”.
Sublimando as “palavras ordinárias” referidas por João Rodrigues “a um nível estético elevado”, Bashô teria criado “um lirismo inédito nas letras japonesas” (Teiiti Suzuki). Para o filósofo teuto- coreano Byung-Chul Han (trasladado em português por Lucas Machado), no entanto, “os haikus […] não são uma ‘expressão’ da ‘alma’. Antes, se deixam interpretar como uma visão de ninguém. Não se deve extrair deles nenhuma interioridade. Nenhum ‘eu lírico’ se expressa. Também as coisas do haiku não são impelidas a nada. Nenhum Eu ‘lírico’ inunda as coisas, fazendo delas, desse modo, metáforas ou símbolos. Antes, o haiku deixa que as coisas brilhem em seu assim-ser. O não-ser-impelido como disposição fundamental do haiku aponta para o coração em jejum do poeta que, na qualidade de ninguém, espelha o mundo em si mesmo. […] A errância constante de Bashō é uma manifestação de seu coração em jejum, que não se prende a nada, que não agarra nada com os dentes. […] O luto [‘Trauer’] de Bashō […] não tem o peso opressor da ‘melancolia’. […] Esse luto […] é a disposição fundamental do seu coração que habita lugar nenhum e que sempre se despede”. Serenidade (“Heiterkeit”) iluminada.
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