Japão, Resenhas

RESENHA CRÍTICA | Tradição versus modernidade em “As Irmãs Makioka”: a mulher japonesa no início do século XX

Por Maria do Carmo Oliveira da Silva Neta 

Obra: As irmãs Makioka | Autor: Jun’ichiro Tanizaki
Data de publicação: 1946-1948 | País: Japão

Um dos grandes nomes da literatura japonesa do século XX, Jun’ichiro Tanizaki (1886-1965) tem grandes contribuições no campo da teoria literária, com especial interesse no contraste cultural entre o Ocidente e a tradição estética japonesa, sendo a estética aqui um conceito que engloba vários campos artísticos, dentre eles a literatura. No ensaio “Em louvor da Sombra” (1933), o autor discorre sobre as diferenças de pensamento entre a tradição japonesa e a tradição ocidental a partir dos jogos de luz e sombra, destacando a oposição direta desses pensamentos alicerçada na contraposição desses elementos. 

Essa não é a única obra em que Tanizaki contrapõe pensamento ocidental e pensamento japonês, o fazendo de forma mais metafórica e menos argumentativa em “As irmãs Makioka” (1946-1948). Publicado em língua japonesa com o título “Sasameyuki” (細 雪), e traduzido para a língua portuguesa por uma equipe de quatro tradutoras muito bem qualificadas, o livro desfia alguns anos na vida de quatro irmãs de uma família de prestigiados comerciantes em decadência financeira. 

Ambientada no Japão dos anos 1930, a obra apresenta as irmãs Tsuruko, Sachiko, Yukiko e Taeko. Tanizaki marca as singularidades da personalidade de cada uma das irmãs a partir do significado atribuído aos seus nomes, tendo em vista que na língua japonesa, nomes próprios terminados com o sufixo –ko (子), cujo significado literal é criança, quase sempre são femininos. 

Redigida num formato de folhetim entre 1943-1948, a obra acompanha o cotidiano da Casa Makioka, uma família de grande prestígio na cidade de Osaka (embora decadente financeiramente), entre 1936 e 1941. A obra foca nas quatro irmãs principais, filhas de um grande e ostentoso comerciante, que até seu falecimento mantém vivo o luxo condizente com o renome da família, embora os rendimentos já não sejam mais os mesmos. Com seu falecimento, a situação começa a mudar, e apenas duas das quatro irmãs haviam contraído matrimônio, o que faz com que hierarquicamente, o comando da família seja passado ao marido da primogênita, adotado como herdeiro pelo sogro por meio do casamento. 

O livro foca nas irmãs e suas agruras, diferenças e rotinas, e o mais próximo de uma “problemática principal”, em torno da qual gira o enredo é a busca por um pretendente adequado para Yukiko, a terceira filha. No entanto, figuras como os maridos, filhos, vizinhos e amigos das irmãs também são apresentados e desenvolvidos, e o caráter cotidiano da obra traz certa leveza em comparação a outros títulos também produzidos durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, a obra foi inicialmente censurada por retratar o contexto histórico de guerra, mesmo como pano de fundo, o que levou à sua publicação de forma privada. 

Há dois núcleos bem marcados na estruturação da família a partir das duas irmãs casadas: a casa central em Osaka, formada pela primogênita, Tsuruko, e seu marido Tatsuo, adotado pelo sogro como herdeiro da família Makioka e residência de Sachiko e Teinosuke em Ashiya. Yukiko e Taeko, na condição de mulheres solteiras de prestigiosa família deveriam residir na casa principal, mas passavam a maior parte do tempo na residência de Ashiya, pela tranquilidade de uma casa mais vazia. 

Tsuruko (鶴子) é grafada com a junção das palavras tsuru + ko, significando “criança dos grous”, numa possível referência ao tradicional papel de mãe e esposa desempenhado pela personagem. Uma vez que a figura do grou dentro da cultura japonesa possui certo simbolismo ligado ao casamento e maternidade (a “mãe de todas as aves”) e sendo Tanizaki um exímio entusiasta do tradicionalismo nipônico, a utilização da metáfora condiz com a construção de uma personagem cujas responsabilidades familiares ocupam um lugar central nas preocupações diárias. Além das obrigações enquanto mãe de muitas crianças e esposa, Tsuruko precisa lidar também com as dinâmicas de chefiar a casa principal da família, como garantir que Yukiko – e logo após, Taeko – casem-se com pretendentes adequados a seu porte e ao nome da família. 

Já Sachiko (幸子), “criança alegre”, carrega um nome que condiz de maneira muito adequada a seu jeito alegre e terno, preocupando-se sempre no cuidado com as duas caçulas. No entanto, ligeiramente diferente de Tsuruko, Sachiko tenta conciliar os deveres filiais e os desejos e interesses das irmãs, permitindo a estas certo livre-arbítrio. Dentro da obra, Sachiko representa também uma figura mediadora entre as irmãs e a casa central, e também uma figura intermediária em relação aos padrões sociais de comportamento esperados de uma mulher japonesa com a sua educação: é uma mulher firme e determinada, mas sem desrespeitar hierarquias nem desafiar limites, tendo aceitado e se encontrado enquanto dona de casa e mãe. 

Yukiko (雪子), a “menina da neve”, é um paradoxo curioso. Contextualizada num momento histórico em que as mulheres utilizavam vestimentas ocidentais com cada vez mais frequência, ela opta por vestir e comportar-se à moda tradicional japonesa, que harmoniza bem com suas feições delicadas. No entanto, Tanizaki deixa claro que a estética e comportamento mais tradicionais de Yukiko contrastam diretamente com os interesses mais internacionalizados da personagem, estudante de francês, praticante de piano e que “entendia de música ocidental muito melhor do que japonesa”, nas palavras do próprio autor. Essa não é a única contradição entre a aparência e o comportamento de Yukiko, que apesar da aparência delicada e frágil, além de seu jeito reservado e contido, é uma mulher firme e cuidadosa. A caçula, Taeko (妙子), é a “criança esquisita” ou a “criança curiosa”1, uma mulher temperamental e caprichosa, que só pode casar-se após Yukiko contrair matrimônio, de forma que engata em diversas atividades artísticas, além de um escândalo amoroso envolvendo a fuga desta com outro jovem de boa família. Esse escândalo é noticiado no jornal local de maneira equivocada, colocando o nome de Yukiko como sendo a jovem que fugira, atrapalhando ainda mais as chances desta de encontrar um pretendente adequado, manchando o nome da família Makioka. Vista pela casa principal da família como uma peça a ser vigiada, Taeko começa a interessar-se em produzir bonecas e logo começa a ter reconhecimento com essa arte. 

Vale salientar aqui uma das preocupações iniciais da casa principal em relação ao ofício de Taeko: o medo de que a carreira como artesã não coubesse a uma moça de sua estirpe, com uma família que remontava diretamente ao período Edo2. É Sachiko quem intervém junto ao ramo principal em favor da profissão de Taeko, além de se oferecer para realizar a supervisão da irmã mais nova. A partir desse apoio, Taeko consegue estabelecer-se profissionalmente e adquirir grande prestígio em sua área de atuação, a ponto de alugar um ateliê e conquistar a concessão do aluguel de um pequeno apartamento, embora próximo à residência de Ashiya. 

Publicado inicialmente num formato de folhetim e posteriormente organizado em dois livros, a obra acompanha a família Makioka entre os anos de 1936 e 1941, de forma que a passagem de longos anos desenvolve muito bem as personagens em seus mundos e cotidianos particulares, criando no leitor uma sensação de proximidade com as quatro irmãs, muito embora um dos eixos centrais seja a busca por um matrimônio para Yukiko. Outro aspecto importantíssimo da obra e de seu caráter de imersão no cotidiano é o contexto histórico da obra, que tem a Segunda Guerra Mundial como plano de fundo, que vai pouco a pouco impactando a vida das irmãs, demonstrando um pouco de como especialmente nos anos iniciais do conflito, ela pouco reverbera dentro do cotidiano no Japão. 

Um dos momentos que mais evidencia a guerra e seus pormenores é a presença recorrente dos Stolz, família alemã vizinha a Sachiko, cujas crianças tinham muita proximidade com sua filha Etsuko, além da própria Sachiko manter laços e conversas com a matriarca, Hilda Stolz. O próprio contexto de agravamento das tensões na Europa força os Stolz a retornarem para a Alemanha, e Hilda e Sachiko trocam correspondências, nas quais a ascensão do nazifascismo e a acentuação das tensões já mencionadas no velho continente se tornam tópicos marcantes o suficiente para serem evidenciados nas cartas.

“Espero uma vinda de todos à Alemanha, assim que a tranquilidade voltar a reinar na Europa. Em muitos lugares, percebemos os soldados se armando para um confronto, mas como ninguém gosta de guerra, acredito que não acontecerá nenhum mal. Confio em Hitler para a resolução da questão tcheca. Sem mais, desejando muita saúde para Vossa Senhoria e para sua família, despeço-me expressando votos de grande estima e consideração.  Respeitosamente,
Hilda Stolz.” (TANIZAKI, p. 366) 

Além do caráter internacional da guerra, Tanizaki evidenciou ao longo da obra outros acontecimentos históricos de relevância para o Japão, como a Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) e a inundação de Kobe em 1938. Uma vez que a trama de As Irmãs Makioka vai até o início de 1941, acontecimentos históricos que contribuíram diretamente para o início da Guerra do pacífico, como o ataque a Pearl Harbor, não aparecem na obra. No entanto, medidas internas como a limitação de cerimônias e as graduais proibições de ostentações e luxos aparecem como pequenas limitações no casamento de Yukiko. 

No que diz respeito à construção de personagem das quatro irmãs, é possível perceber que Tanizaki constrói as irmãs Makioka ao longo da trama enquanto representações graduais de arquétipos femininos que começam a surgir no efervescente início do século XX. Esses aspectos estão ligados também à simbologia de seus nomes, como já mencionado anteriormente. A primogênita Tsuruko representa uma mulher mais “tradicional”, tanto em sua vestimenta, quanto no sentido de assumir o papel que lhe é socialmente esperado, de mãe, esposa e irmã mais velha. Já Sachiko demonstra maior aptidão e traquejo social, e pontualmente vestir roupas ocidentais, além de ser relativamente permissiva com as irmãs mais novas, muito embora ainda esteja ligada aos laços do tradicionalismo e do papel marital e materno. 

É Yukiko quem começa a romper com as expectativas sociais imputadas a ela da maneira mais sutil que consegue: a rejeição de pedidos de casamento com indivíduos que não lhe interessem ou que estejam aquém de suas expectativas. Nesse sentido, ultrapassar os trinta anos solteira por tanta seletividade (muito embora nem todas as propostas de casamento tenham sido negadas por ela) é uma forma de resistência sem infringir seu lugar na hierarquia familiar e social. E por último, Taeko representa o questionamento e rompimento de alguns aspectos da tradição relativos aos papéis de gênero, não só por questões interpretadas socialmente como “subversivas”, como a fuga com Okubata aos vinte anos e pela posterior gravidez não-planejada, mas também por gerar a própria renda e construir uma carreira profissional. Além disso, sua capacidade de acompanhar o mercado e migrar de áreas de atuação sempre que necessário, demonstrando talento, aptidão e sobretudo uma intensa capacidade de assimilação e adaptação. 

Tsuruko e Taeko representam, assim, dois opostos no que diz respeito ao comportamento feminino no Japão desse momento. Enquanto Tsuruko assume a posição e responsabilidade de ser a primogênita, bem como de administrar a casa e a família enquanto seu marido trabalha, Taeko já pertence a uma nova geração de mulheres influenciada pelos ventos da mudança que o século XX soprava, e que buscavam crescimento individual e profissional, além da perspectiva de dona de casa com dedicação exclusiva. Vale salientar que as mudanças reivindicadas pelas mulheres da geração de Taeko não excluíam a possibilidade do matrimônio e da maternidade, mas sim uma alternativa a uma espécie de clausura doméstica a qual as esposas estavam submetidas. 

Mesmo num contexto bélico, o número de mulheres japonesas assumindo postos de trabalho fora de casa só vem a ser expressivo nos últimos anos de guerra, embora esses números sejam menores num comparativo com os países ocidentais (HAVENS, 1975) 3 dizia respeito muito mais a funções auxiliares, como arrecadação de fundos e participação em associações de mulheres (ativas no Japão desde a segunda metade do século XIX), sendo responsáveis assim pela manutenção de certa “estabilidade social” em meio ao conflito. 

Jun’ichiro Tanizaki foi também um fervoroso defensor da ideia de um tradicionalismo japonês muito idealista, remontando principalmente ao período Edo, embora se conecte também com aspectos culturais de períodos anteriores. Minúcias culturais japonesas são também destacadas na obra, a exemplo do intenso contraste entre as regiões de Kansai e Kanto4, inclusive no campo linguístico. A mudança de Tsuruko de Osaka para Tokyo reflete algumas dessas questões, principalmente nas visitas de Sachiko, que se sente acuada em interagir socialmente por falar o dialeto de Kansai. 

Premiado em 1947 com o Mainichi Prize for Publication and Culture e em 1949 com o Asahi Culture Prize, “As Irmãs Makioka” é certamente uma das obras de maior prestígio no momento de seu lançamento. Dada a complexidade dos personagens, a execução da trama e o retrato da intimidade e do cotidiano feminino nessa obra, não há surpresas na coroação deste livro como uma das novelas mais importantes da literatura japonesa pós-Meiji.


1 O kanji que compõe o nome Taeko, 妙 myou, pode ser traduzido de diversas formas, entre elas “esquisito”, “curioso” ou “misterioso”. Os três adjetivos são características aplicáveis à personagem Taeko, em maior ou menor medida.

2 O período Edo 江戸時代 (1603-1868) foi marcado pelo shogunato Tokugawa e pela política isolacionista sakoku (鎖国), que limitava as relações comerciais e diplomáticas com diversos países, especialmente as nações da Europa (com exceção do comércio holandês na ilha artificial de Dejima). O florescimento cultural e o processo de urbanização nas principais metrópoles japonesas favoreceram o surgimento de novas classes e hierarquias sociais, com a ascensão de uma classe intermediária ligada ao comércio e às artes. Tanizaki situa a origem da família Makioka entre essas prestigiosas famílias de comerciantes mais abastados. Sendo assim, muito embora a loja da família tenha sido vendida após a morte do patriarca, o legado do nome Makioka ainda dava às irmãs considerável prestígio e relevância social, motivo da preocupação tão estrita do ramo principal em manter o nome da família limpo.

3 HAVENS, Thomas R. H.. Women and War in Japan: 1937-45. The American Historical Review, v. 80, n. 4, 1975.

4 Regiões localizadas na ilha de Honshu, a principal ilha do arquipélago japonês, sendo Kansai mais a oeste, com antigas cidades como Osaka e Kyoto, e Kanto mais a leste da ilha, compreendendo a atual prefeitura de Tokyo, além de cidades como Yokohama e Chiba.

REFERÊNCIAS

DUUS, P. (Ed.). (1989). The Cambridge History of Japan (The Cambridge History of Japan). Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CHOL9780521223577. 

FRÉDÉRIC, Louis; HWANG, Álvaro David. O Japão: Dicionário e Civilização. São Paulo: Globo Livros, 2008. 

FUJITA, Fumiko. The Status of Women Faculty: a View from Japan. Journal of Women’s History, Baltimore, v. 18, n. 1, 2006. 

MASCITELLI, Juliana Saito Pinheiro. Um olhar sobre o grou, a felicidade, a neve e o mistério: as quatro irmãs Makioka. 2016. Dissertação (Mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japonesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, University of São Paulo, São Paulo, 2016. doi:10.11606/D.8.2016.tde- 16052016-145547. 

GOLLEY, Gregory L. “Tanizaki Junichiro: The Art of Subversion and the Subversion of Art.” Journal of Japanese Studies 21, no. 2 (1995): 365–404. https://doi.org/10.2307/133012. 

HAVENS, Thomas R. H.. Women and War in Japan: 1937-45. The American Historical Review, v. 80, n. 4, 1975. 

SHIRANE, Haruo; SUZUKI, Tomi; LURIE, David. The Cambridge History of Japanese Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

Leave a Reply