Estudos Coreanos, Resenhas

“We Do Not Part”: o olhar de Han Kang para um passado que não pode ser esquecido

We Do Not Part”: o olhar de Han Kang para um passado que não pode ser esquecido

por Clara Menezes

    imagem: Jessica Gow/TT/Alamy

Ainda que muitas memórias do passado tentem ser apagadas por governos autoritários, as marcas de violências quase inenarráveis atravessam o tempo e invadem indivíduos de diferentes gerações. Esses traumas históricos são o tema de “We Do Not Part” (2025), da escritora Han Kang. Traduzido para o inglês três anos depois do seu lançamento na Coreia do Sul e com estreia marcada no Brasil para maio de 2025 sob o título “Sem despedidas” (Todavia), o livro explora a história de um dos períodos mais cruéis do país: o Massacre de Jeju, que dizimou aproximadamente 10% dos moradores da ilha e permaneceu por décadas sem visibilidade devido às sucessivas ditaduras militares.

A história começa quando Kyungha, uma autora aterrorizada por pesadelos desde que começou a escrever sobre o Massacre de Gwangju, recebe uma mensagem urgente após uma amiga, Inseon, ser internada por causa de um acidente. Ao chegar ao hospital, a protagonista descobre ter uma missão. Ela precisa ir a uma vila isolada em Jeju, onde a amiga mora, para salvar seu pássaro de estimação. O animal não pode ficar muito tempo sem comida e água, então é imprescindível que Kyungha viaje o mais rápido possível.

O percurso não será fácil, porque assim que chega à ilha, uma tempestade se alastra na região. A maioria dos ônibus para de circular, os moradores se protegem em suas casas, o comércio fecha, e a personagem principal se vê completamente isolada. Rodeada de neve, sem comunicação com o mundo exterior e com um destino incerto à frente, ela passa a ter medo de estar na iminência da morte. Como encontrar a casa com poucas orientações enquanto anoitece? Retornar não é mais possível devido ao horário, então resta apenas seguir em frente.

No caminho, Kyungha adentra um universo onírico, em que não consegue diferenciar realidade de sonho. Neste lugar indefinido entre a vida e a morte, ela revisita a trajetória da amiga, cuja história está conectada ao Massacre de Jeju. Ali, em meio às árvores cobertas de neve, ao vento frio, às luzes estranhas e aos encontros impossíveis no mundo concreto, o passado desafia as leis do tempo e permanece no presente. Isso porque a memória da violência e o som ecoado de décadas de silenciamento podem ser apreendidos dentro da vila onde todos os seus moradores foram assassinados.

Ao mesclar ficção com fatos históricos, Han Kang utiliza um recurso similar ao de “Atos Humanos” (2021), que reúne um mosaico de vozes sobre os acontecimentos do Massacre de Gwangju: o de conceder aos mortos uma chance de contar as próprias experiências. Sejam eles vítimas diretas das violências ou não, os espíritos ganham espaço nas duas obras da escritora, talvez porque a literatura – e a arte, no geral – é a única forma de eternizar em primeira pessoa as lembranças de quem morreu.

A partir disso, com uma narradora que não sabe se está morta, delirando, sonhando ou apenas vivendo, os leitores se aproximam da tragédia que assolou Jeju entre 1947 e 1953. Também conhecido como “4.3” ou “3 April Uprising”, o conflito iniciou durante o Governo Militar do Exército dos Estados Unidos na Coreia e perdurou na presidência de Syungman Rhee, um anticomunista pró-estadunidense. No início, o que eram apenas alguns protestos no Samiljeol, dia relacionado ao movimento da independência contra o colonialismo japonês, tornou-se uma insurreição em grande escala (Park, 2010). Mas, no período da Guerra Fria e no início da separação entre Coreia do Sul e Coreia do Norte, não demorou para que Jeju fosse classificada como comunista. Assim, milhares de pessoas foram assassinadas arbitrariamente pela polícia, por militares e por grupos de ultradireita sob a ideia de combate ao comunismo (Kim, 2021). Até mesmo crianças eram mortas por associação (Kim, 2021): se um parente parecia ser membro de uma guerrilha, de um movimento de resistência ou era simplesmente um estudante, todos os familiares também eram perseguidos.

Ainda que seja quase impossível dimensionar as violências vividas durante a época, por ser um horror situado “fora da vida e da morte” (Arendt, 2000, p. 494), Han Kang transforma a própria ficção em um fruto da força da memória. Com uma narrativa sensível, não linear e repleta de perguntas não respondidas, “We Do Not Part” não permite que ninguém apague a dor de cidadãos que vivenciaram governos autoritários. Mais que isso: o livro recorda o que é ser humano diante de violências que destroçam qualquer conceito de humanidade.

Referências

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PARK, Eugene Y. Korea: A History. Stanford: Stanford University Press, 2022.

KANG, Han. Atos Humanos. São Paulo: Todavia, 2021.

KANG, Han. We Do Not Part. Londres: Hogarth, 2025.

KIM, Hyejin. Transmission of Memory: heritage trail and jeju uprising. 2021. 132 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Artes, Charles University, Praga, 2021. Disponível em: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/128151. Acesso em: 07 mar. 2025.

SOBRE A AUTORA:

Clara Menezes

Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante da Curadoria de Estudos Coreanos. Pesquisa na área de sociologia da literatura, com foco na obra de Han Kang. E-mail: mclaracmenezes@gmail.com.

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