Por Fernanda Bezerra (graduanda em Ciência Política pela UFPE)
Com os caminhos que a internet abre, torna-se fácil e comum acessar incontáveis conteúdos e inúmeras produções ao redor do mundo. No entanto, confesso que meu contato inicial com a cultura da “cultivação” foi bem confuso, uma vez que, quando ouvi de uma amiga que ela estava lendo uma história sobre guerreiros cultivadores, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi uma enorme área de plantação de arroz sendo arada por espadas.
Pensando nisso, e com o intuito de evitar que você também não saiba do que se trata quando algum amigo seu comentar sobre, o Sextou na Ásia de hoje irá abordar o gênero chinês Xianxia ou, como é mais conhecido no ocidente, Fantasia de Cultivo.
O termo Xianxia pode ser traduzido mais genericamente como “heróis imortais”, mas decompondo a palavra, chegamos a um significado mais profundo, visto que temos os caracteres xian (仙), o qual significa “imortal” em um sentido de transcender, isto é, um ser que se eleva à imortalidade; e o xia (侠), que pode ser entendido como “herói”, englobando, mais especificamente, as características trazidas pela definição desse substantivo, entre elas, a coragem, a justiça e a magnanimidade do indivíduo (JING, 2021). Assim, o Xianxia é um gênero de fantasia chinesa que se baseia no budismo, no taoísmo, nas artes marciais e na medicina chinesa tradicional, que conta histórias sobre guerreiros cujos métodos os permitem, através da meditação e treinamento, transcender para a imortalidade. Ou seja, nas aventuras dos Xianxia, acompanhamos personagens que, com seus métodos de cultivo, lutam contra seres do mal, completam missões de resgate ou até mesmo desvendam charadas ─ seguindo sempre as regras do xia, isto é, buscando por justiça e derrotando os opressores ─ com o intuito de aumentar a sua evolução e diminuir o caminho para se tornarem guerreiros imortais (SALAO, 2021).
Nesse contexto, compreender o conceito de cultivo nessa mitologia se torna fundamental (prometo que não tem nada a ver com plantações). Logo, os cultivadores são aqueles que realizam a cultivação, que nada mais é do que a técnica ─ baseada em um contexto taoísta ─ que permite aos indivíduos evoluírem e alcançarem o estágio de imortais. Assim, através de práticas marciais, meditação e disciplina, os cultivadores são capazes de se fortalecer, ganhar mais poderes e de encontrar a imortalidade. Entretanto, é importante pontuar que a imortalidade aqui entendida não é total, pois os guerreiros podem sim morrer ─ por desvio de qi¹, ferimento de batalha, etc ─, a ideia é a de estender suas expectativas de vida. Dessa forma, eles não falecem devido à velhice e vivem por muitos e muitos anos.
Dando continuidade, o progresso do cultivo possui estágios e, a cada nível atingido, o cultivador adquire novas habilidades, sejam elas físicas ou espirituais ─ maior força ou uma audição mágica, por exemplo. No final, o objetivo é alcançar o último estágio e se transformar nos seres imortais (os xian). É interessante ressaltar ainda que essa construção de evolução a partir de estágios é muito parecida com a prática da vida real que acontece no qigong, um sistema milenar de exercícios mente-corpo-espírito que, por meio de técnicas de respiração, meditação, postura e concentração, promove uma melhora da saúde mental e física ao equilibrar a energia do corpo (qi).
Contudo, apesar das bases e similaridades com o mundo real e com a cultura chinesa prática, os Xianxia se esbaldam nos elementos fantasiosos do folclore da China. Nas histórias, encontramos, por exemplo, demônios, espíritos malignos, fantasmas e criaturas sobrenaturais muito marcantes da mitologia chinesa. Na verdade, essas criaturas e bestas mágicas são peça fundamental para a construção do mundo nos Xianxia, pois são contra elas que os guerreiros lutam em favor da proteção dos mais vulneráveis. Além disso, essas criaturas também propiciam o avanço de nível dos cultivadores, uma vez que, quando derrotadas, indicam um progresso no cultivo dos personagens.
Outro ponto essencial para os Xianxia são os itens mágicos, que aparecem aos montes ao decorrer das histórias. De pílulas regeneradoras a flautas mortais, os cultivadores possuem um grande arsenal de itens à sua disposição, mas poder ou não usá-los depende sempre do nível de cultivação em que os guerreiros se encontram. Dessa maneira, esses objetos são classificados por estágios de poder, o que nos permite concluir que quanto mais evoluído na cultivação o personagem esteja, maiores os poderes dos seus itens e de suas armas encantadas. Nesse sentido, o cenário inverso também é verdadeiro, dado que quanto mais inferior na cultivação o guerreiro estiver, menos preparação e habilidade para usar armas e itens superiores ele demonstrará. Logo, cada nível de cultivo exige uma arma e objetos próprios (SALAO, 2021).
Antes de finalizar este tópico, acho importante dar foco a uma arma mágica que rouba a cena quando aparece nas obras de Xianxia: as espadas voadoras! São espadas mágicas que possuem a capacidade de levitar e, por isso, são muito utilizadas como meio de transporte pelos personagens. Mas calma, vamos usar a imaginação, vou tentar te ajudar com essa imagem mental. Por serem mágicas, elas podem se expandir até alcançarem um tamanho confortável para uma pessoa sentar ou ficar em pé em cima, além de conseguirem voar com uma rapidez considerável, mostrando-se um transporte muito útil em momentos de fuga. Ademais, são bastante competentes no ataque, pois podem ser lançadas a grandes distâncias e, mesmo assim, alcançam seus alvos. Com certeza são as queridinhas dos consumidores de Xianxia.
Outro aspecto relevante das histórias dos Xianxia é que os personagens vivem em uma sociedade de cultivadores formada por seitas, isto é, são instituições, organizadas de forma hierárquica, as quais buscam aperfeiçoar a arte e a prática de cultivo. Assim, encontramos, nas diversas histórias, configurações diferentes em relação à quantidade de seitas de cada universo, mas um ponto em comum é que elas geralmente se organizam a partir de um líder, seguido pelos anciãos, sendo esses os responsáveis por educar, treinar e guiar os discípulos daquela seita pelo melhor caminho da cultivação. Destacam-se também, conforme retratado por diferentes autores, diversificados métodos de cultivo adotados pelas seitas, algumas, por exemplo, se mostram muito regradas e rígidas, enquanto outras se revelam mais relaxadas quanto às regras. No entanto, o respeito pelos anciãos (pelos mais velhos em geral) é exigido por todas, sendo esse um ponto indiscutível.
Além disso, é importante saber que, nos Xianxia, nem todas as pessoas são cultivadoras. Nesses universos, normalmente, perto de uma comunidade de pessoas comuns, sem poderes mágicos ou habilidades especiais, é onde uma seita se localiza. Embora não possuam habilidades mágicas, as pessoas dos vilarejos ainda vivem em um universo do folclore chinês, isto é, são assombradas por criaturas e fantasmas malignos. Ao se estabelecerem perto dessas comunidades, as seitas (principalmente os discípulos) agem como uma equipe de segurança, responsáveis por lutar contra as bestas do mal e proteger os cidadãos indefesos (cenário muito interligado aos princípios do xia). Com isso, no Xianxia, muitas das aventuras dos personagens são impulsionadas por problemas que atingem as vilas perto de suas seitas e por criaturas que estão importunando pessoas comuns.
Com toda essa construção de mundo, não é de se surpreender que Xianxia esteja fazendo um barulho considerável nas mídias. Ao se inspirarem na rica herança cultural da China, essas histórias ficcionais estão disseminando a mitologia chinesa junto com algumas de suas tradições e lemas. Seja na literatura, nos jogos ou nas séries televisivas, essas produções estão atingindo e conquistando um público cada vez maior. É difícil passar pelo catálogo da Netflix, por exemplo, e não encontrar uma série chinesa de Xianxia (já viu a capa de The Untamed ou Ashes of Love por lá? Pois são Xianxia!). E, no núcleo dos leitores, o fandom das famosas “novels chinesas” só faz crescer, sendo cada vez mais fácil achar perfis dedicados a propagar novas histórias. E, no Wattpad, uma plataforma em que leitores autônomos podem publicar seus escritos, encontram-se inúmeras traduções em português, feitas de fãs para fãs, dessas obras literárias.
Vale ressaltar, também, que a maioria destas obras nascem na literatura e, só depois, são adaptadas para diversos outros formatos. Esse é o caso de uma das mais conhecidas pelo público: Mo Dao Zu Shi (MDZS), de autoria da Mo Xiang Tong Xiu, que recebeu sua versão tanto em animação quanto em live action, esta última sendo a série televisiva The Untamed (2019). Aqui no Brasil, tal obra também era uma das traduções feitas de fãs para fãs presentes no Wattpad, mas, após o grande sucesso (recebeu mais de 1 milhão de acessos quando ainda estava no ar!²), editoras começaram a prestar mais atenção a essa possível expansão de público consumidor.
Nesse sentido, a tradução pode se configurar como um dos maiores obstáculos para a propagação do gênero no Brasil, uma vez que, para se chegar à versão em português elaborada pelos fãs, se usa a versão em inglês que foi traduzida do mandarim também por fãs. Com essa camada de idiomas, muitos dos termos e significados próprios do folclore chinês são perdidos. E, por não ser uma tradução oficial, muitas pessoas desistem de ler. No entanto, embora haja todo esse empecilho, as obras de Xianxia conquistaram (e continuam conquistando) um público grande, cujas reivindicações estão começando a ser ouvidas. Dessa forma, depois de uma difícil negociação, a editora brasileira NewPOP conseguiu adquirir os direitos de publicação de Mo Dao Zu Shi e, logo mais, teremos a tradução oficial ─ direto do mandarim ─ da primeira novel chinesa de Xianxia em terras brasileiras.
A NewPOP ainda não deu datas para a publicação, mas os fãs estão muito animados e confiantes de que esse é apenas o início de uma enorme lista de novels chinesas traduzidas para o português, pois estamos prontos e ansiosos para mais. Recado dado, editoras!
Extra
É importante diferenciar o Xianxia de outros dois gêneros que também estão se destacando na mídia: Wuxia e Xuanhuan. O primeiro, Wuxia, também tem base no taoísmo e no budismo, mas seu foco é marcado pelas artes marciais da China Antiga. Nele, não encontramos guerreiros em busca da imortalidade, nem objetos mágicos ou habilidades “sobrenaturais” advindas da cultivação. Por isso, são histórias menos fantasiosas (mas ainda bem exageradas se levarmos em consideração os movimentos e golpes marciais realizados pelos personagens), o que nos permite entender Wuxia como um gênero low fantasy, enquanto o Xianxia se encaixaria na categoria de high fantasy.
Já o Xuanhuan tem toda a fantasia que o Xianxia possui e até mais, uma vez que também incorpora elementos estrangeiros em suas histórias e não se limita aos dizeres taoístas. Assim, compartilha da mitologia e do folclore chinês, mas está livre para assumir aspectos de fora desse universo também. Ademais, as referências e bases do taoísmo não estão presentes nesse gênero, e nem aquele conceito de heróis justos e que lutam contra o mal a favor dos inocentes (o conceito de xia).
¹ Na cultura tradicional chinesa, o qi é o elemento que representa a força/energia vital que todas as coisas possuem.
² A fã retirou sua tradução do site após a editora NewPOP confirmar que iria lançar a versão oficial de MDZS em português.
Referências Bibliográficas
JING, Yujuan. Reconstructing Ancient Chinese Cultural Memory in the Context of Xianxia TV Drama. 2021. Disponível em: https://www.diva-portal.org/smash/record.jsf?pid=diva2%3A1568350&dswid=-843. Acesso em: 12 jan. 2021.
MOUNTAIN, Immortal. Glossary of Terms in Wuxia, Xianxia & Xuanhuan Novels. Disponível em: https://immortalmountain.wordpress.com/glossary/wuxia-xianxia-xuanhuan-terms/. Acesso em: 12 jan. 2021.
SALAO, Cole. Xianxia: your guide to cultivation fantasy. 2021. Disponível em: https://www.tckpublishing.com/xianxia/. Acesso em: 12 jan. 2021.
TROPES, Tv. Spirit Cultivation Genre. Disponível em: https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/SpiritCultivationGenre. Acesso em: 12 jan. 2021.
REDDY, Hanumanth. What is Cultivation in Chinese Novels and Manhua? 2021. Disponível em: https://animeukiyo.com/what-is-cultivation-in-chinese-novels/. Acesso em: 12 jan. 2021.
WONG, Tao. Xianxia, Wuxia, Cultivation and more: a small explanation. 2019. Disponível em: https://www.mylifemytao.com/xianxia-wuxia-cultivation-and-more-a-small-explanation/. Acesso em: 12 jan. 2021.
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