Japão, Resenhas

RESENHA CRÍTICA | Yasuke

Redação: Camila Machado: camila.machado712@gmail.com
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Em 29 de abril deste ano, estreou na Netflix a animação Yasuke, que traz como protagonista o único samurai negro de que se tem registro histórico. O projeto foi desenvolvido pelo MAPPA, notável estúdio de animação japonesa que também é responsável por produções emblemáticas como Yuri!!! on Ice, Kakegurui e o mais recente fenômeno, Jujutsu Kaisen, e foi criado, dirigido e produzido pelo estadunidense LeSean Thomas, que se interessou em saber mais dessa história ao ver imagens de Yasuke no livro Kurosuke de Kurusu Yoshio. A trilha sonora ficou nas mãos de Steven Ellison, mais conhecido por seu nome artístico Flying Lotus ou FlyLo, e a equipe de dublagem contou com Soejima Jun na voz japonesa do protagonista e o ator Lakeith Stanfield na voz de língua inglesa. A animação recebeu 72 pontos no site Metacritic, indicando uma recepção positiva do público, e rendeu uma adaptação para mangá pela editora Shogakukan, que já está sendo serializada desde o final de julho.

De acordo com os registros históricos provenientes das cartas dos jesuítas, Yasuke chegou escravizado ao Japão no século XVI através da visita do padre italiano Alessandro Valignano ao país (MANATSHA, 2019, p. 4; PURY, 2020). Sua aparência destoante dos traços fenotípicos da sociedade japonesa atraíram a atenção da população local e despertou o interesse do daimyo Oda Nobunaga (1534-1582). Impressionado com sua fisionomia, Nobunaga adquiriu Yasuke, que se tornou o samurai negro mais famoso do qual se tem registro (MANATSHA, 2019). Ele atuou como samurai de Oda Nobunaga e posteriormente de seu irmão Oda Nobutada, até suas mortes. A última menção histórica diz que Yasuke foi entregue por Akechi Mitsuhide aos jesuítas (MANATSHA, 2019) 

Diferente da realidade, a animação escolhe traçar outros caminhos: um dos pontos principais que merece ser destacado é o enredo da animação, no qual Yasuke, que já não mais exerce a função de Samurai, vive como um barqueiro em um pequeno vilarejo e precisa enfrentar traumas de seu passado ao aceitar levar uma pequena garota doente para o único local que, segundo sua mãe, oferecerá tratamento adequado.

Ao pensar em como contar essa história, Thomas escolhe se desprender de uma base histórica tradicional, nos moldes bibliográficos. Diversamente, ele usa de liberdade criativa e investe em uma narrativa ambientada em um futuro distópico, no qual o pouco registro histórico que se tem sobre Yasuke, apresentado quase inteiramente no primeiro episódio, se mistura a uma realidade ficcional onde tecnologia robótica e elementos sobrenaturais coexistem com os habitantes do arquipélago japonês. Essa escolha dividiu opiniões e grande parte da audiência considerou o enredo confuso, além de demonstrar certo descontentamento ao ver que pouco da real vida do samurai foi trabalhada na animação. Contudo, é importante salientar que as cartas dos jesuítas apresentam apenas fragmentos dessa história, sendo difícil remontar assertivamente uma biografia completa. Além disso, deve-se considerar outras tangentes que exercem forte influência no torneio de uma adaptação, como público-alvo e o meio de veiculação, por exemplo. Uma leitura não-acadêmica interessante para saber mais sobre o assunto é a trilogia do historiador João Paulo Oliveira e Costa cujo primeiro livro se chama O Samurai Negro.



Cena da animação Yasuke. Fonte: Polyglon

Um dos destaques da animação é o trabalho de Steven Ellison na trilha sonora, uma grata surpresa para seus fãs e para aqueles que ainda não conheciam seu trabalho. Flying Lotus é creditado como produtor executivo e diretor musical da obra. Anteriormente já havia contribuído musicalmente para outras animações, como Carole & Tuesday e o curta animado Blade Runner 2049. Em Yasuke, o artista incorpora em sua sonoridade elementos típicos musicais japoneses, como o uso do taiko, koto e biwa, com o cuidado de evitar cair em estereótipos ocidentais sobre a música japonesa. A dedicação de Flying Lotus pode ser ouvida em seu último álbum intitulado Yasuke (2021), resultado de seu excelente trabalho para a animação.  

Em linhas gerais, a obra se destaca em seus aspectos de produção e musicais, embora desaponte aqueles que esperam ver um relato histórico fiel sobre o primeiro samurai negro do Japão. Apesar da falta de consenso do público sobre as escolhas narrativas da obra, a maneira pela qual LeSean Thomas decide contar essa história parece proposital. A ficção permite, nesse caso, fugir da realidade na qual Yasuke retorna para as mãos de seus escravizadores e permite ao público imaginar um futuro diferente para o protagonista, além de viabilizar que as lacunas históricas sejam preenchidas criativamente. O recurso aos elementos de fantasia, que exploram imagens de um passado futurista japonês, aprofunda o sentimento do criador da animação ao tencionar a criação de uma obra que, apesar de certo compromisso com certas evidências históricas do Japão, ultrapassa as barreiras de uma história contada por fatos.

Muito longe de afastar o mérito da animação, esses recursos narrativos e imagéticos que compõem o cenário da história de Yasuke estabelecem uma relação nítida quanto à opção de uma animação que se baseia em recursos criativos mais do que com o compromisso fiel de uma narração histórica verossímil. Tal ponto pode ser positivamente encarado quando se estabelece uma comunicação honesta com o público, na medida que entrega entretenimento e transparência no que concerne à linha de enredo futurista e fantástica que se propõe a fazer.  Isso porque, de fato, o faz, contudo sem lançar mão do potencial impulsionador de reflexões que transbordam o desenho, e que são tão caras para animações de grande alcance como Yasuke, tal como a interação do Japão e de suas figuras emblemáticas – os daimyo e os samurais, por exemplo – com elementos externos à sua cultura, como comunidades estrangeiras e povos de origens africanas. 

Nesse sentido, o potencial criativo explorado pelos criadores de Yasuke convocam uma experiência que usufrui intensamente de elementos ficcionais fazem jus ao entretenimento que busca retratar a grandiosidade histórica do chamado primeiro samurai negro. Pode-se afirmar que a fidelidade aos fatos passa notadamente – mas não negativamente – ao segundo plano da animação, quando o que se sobressai é a boa experiência amarrada pela curiosidade e admiração pela construção da história de um personagem tão rico e complexo como Yasuke.

*Esta resenha faz parte de uma série, com mais dois textos, que abordam diferentes aspectos da animação Yasuke. O próximo texto a ser publicado discute a relação da sociedade japonesa com a comunidade negra sob a ótica de Yasuke.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANATSHA, Boga. Historicising Japan-Africa relations. Pula Botswana Journal of African Studies Vol. 33(1), 2019.
MAPPA. About. Disponível em: http://www.mappa.co.jp/about.html. Acesso em: 09 out. 2021.

R. W. Purdy. African Samurai: The True Story of Yasuke, A Legendary Black Warrior in Feudal Japan. History: Reviews of New Books, 48:3, 64-65, 2020.

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