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ARTIGO DE OPINÃO| Excesso de Trabalho ou Excesso de Exploração? A Contradição do Artigo 45 da lei de trânsito na Coreia do Sul

 Autora: Larissa Mikaely de Farias

    Imagem: https://exame.com/carreira/lei-limita-a-semana-de-trabalho-a-52-horas-na-coreia-do-sul/

O Artigo 45 da legislação de trânsito sul-coreana, que proíbe a condução de veículos motorizados sob condições que impeçam a operação segura, como o excesso de trabalho, doença ou uso de drogas (ROAD TRAFFIC ACT, 2020), parece, à primeira vista, uma medida de proteção aos trabalhadores e à sociedade. Entretanto, ao analisarmos mais profundamente o contexto cultural e econômico da Coreia do Sul, percebemos uma contradição fundamental: o excesso de trabalho é incentivado pela própria sociedade, sendo visto como um sinal de dedicação e honra. Como, então, este artigo pode ser eficaz em um ambiente que valoriza justamente a exaustão laboral?

Dentro dessa ótica, na Coreia do Sul, a cultura de trabalho é conhecida, segundo Lee ( 2023, p.262), por exigir “jornadas de trabalho extremamente longas” de seus trabalhadores. A Lei de Normas Trabalhistas emendada, promulgada em 20 de março de 2018, reduziu a carga máxima semanal de 68 para 52 horas (Ministry of Employment and Labor, 2021). No entanto, em muitos casos, a dedicação extrema ao trabalho é valorizada como um sinal de compromisso, com trabalhadores que se dedicam mais horas frequentemente elogiados e vistos de forma positiva. Trabalhar até o limite é quase uma norma, e o conceito de “karoshi” — morte por excesso de trabalho (Pizzo, 2018) — não é desconhecido no país. Nesse contexto, surge uma questão crucial: o Artigo 45 é de fato uma medida de proteção ou acaba sendo uma punição adicional em um sistema que já favorece a exaustão?

Dessa forma, embora a intenção por trás do artigo seja legítima (garantir a segurança no trânsito e proteger motoristas e terceiros), ele não aborda o verdadeiro problema  que é a exploração extrema da força de trabalho e as longas horas de trabalho. Essa frenética exploração parte do capitalismo sul-coreano, que é voltado para o crescimento econômico e a produtividade incessante (Lee, 2023) e, coloca o lucro acima da qualidade de vida. Nesse ambiente, a exaustão dos trabalhadores não é vista como um problema a ser resolvido, mas como um resultado esperado da busca por eficiência.

Sendo assim, segundo o estudo “Impacts of job control on overtime and stress: cases in the United States and South Korea”, de Sehoon Kim, Kibum Kwon e Jian Wang (2022),  na Coreia do Sul, os funcionários tendem a trabalhar além do necessário. Isso não ocorre apenas por motivação pessoal, mas também devido ao ambiente de trabalho e à cultura local, que tornam o trabalho excessivo uma prática comum ou até uma exigência implícita. Essa cultura rígida valoriza o comprometimento dos funcionários, encorajando-os a trabalhar além das exigências formais. Assim, o controle sobre o ambiente e as práticas de trabalho se torna um aspecto crucial, pois influencia a maneira como os trabalhadores enxergam a prioridade de suas vidas em relação ao trabalho. Logo, penalizar alguém por estar exausto ao volante não resolve o fato de que essa exaustão é sistematicamente incentivada pelo próprio país.

Logo, a proibição da condução em condições de excesso de trabalho ignora as causas estruturais da fadiga dos trabalhadores. Ela foca somente nos sintomas de uma cultura prejudicial que valoriza a quantidade de horas trabalhadas em detrimento da saúde mental e física dos indivíduos. O verdadeiro problema está enraizado na ideia de que quanto mais se trabalha, mais valor se tem, gerando uma espiral de exploração que muitas vezes acaba colocando o trabalhador em situações de risco ao qual ele não tem como prever, seja no trânsito ou em sua própria saúde.

Portanto, para que o Artigo 45 seja eficaz, é necessário um esforço mais amplo por parte do governo e das empresas para repensar essa cultura de trabalho. É preciso criar um ambiente em que o trabalhador não precise se exaurir para ser valorizado. Medidas de proteção, como limitar as horas de trabalho, garantir períodos de descanso e investir em saúde mental, devem ser uma prioridade. Sem essas mudanças estruturais, a proibição de conduzir sob excesso de trabalho não passará de uma medida superficial, incapaz de enfrentar o verdadeiro problema.

Sendo assim, essa contradição só ilustra como o capitalismo sul-coreano trata sua força de trabalho: o trabalhador é muitas vezes visto como um recurso a ser explorado ao extremo, enquanto as políticas que deveriam protegê-lo acabam penalizando-o por não suportar a pressão. O Artigo 45, em vez de resolver o problema, pode se tornar um mecanismo de punição para aqueles já sobrecarregados pelo sistema. Além disso, recentemente o governo tem discutido a redução das longas horas de trabalho como uma medida para diminuir o número de mortes, melhorar a saúde mental e aumentar a produtividade da população (Chen, 2023).

Em resumo, a proibição de condução sob excesso de trabalho na Coreia do Sul destaca a hipocrisia de uma sociedade que valoriza a exaustão como uma forma de sucesso. Se a intenção é realmente proteger os trabalhadores, é necessário ir além de medidas punitivas e repensar a forma como o trabalho é organizado e valorizado. Só assim será possível garantir que o Artigo 45 não se torne mais um instrumento de opressão, mas parte de um esforço real para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores e da sociedade. 

Referências 

KIM, Sehoon; KWON, Kibum; WANG, Jia. Impacts of job control on overtime and stress: cases in the United States and South Korea. The International Journal of Human Resource Management, v. 33, n. 7, p. 1352–1376, 2022.

LEE, Joohee. Shadow labor in care services: why do South Korean women care workers work such long hours and get paid so little? Journal of Korean Studies, v. 28, n. 2, 2023. DOI 10.1215/07311613-10621430.

MINISTRY OF EMPLOYMENT AND LABOR. Labor standards: protecting working conditions and improving employment practices. Complexo Governamental Sejong, 422, Hannuri-daero, Sejong-si, 30117, República da Coreia, 2021. Disponível em: https://www.moel.go.kr/english/policy/laborStandards.do. Acesso em: 23 out. 2024

PIZZO, Júlia de Paula; OGURA, Cristhielle Tieko; DRUGOVICH, Gustavo Auada. Karoshi: uma breve revisão sobre a morte por excesso de trabalho. In: II ENCONTRO DO LABORATÓRIO INTERINSTITUCIONAL DE SUBJETIVIDADE E TRABALHO, novembro 2018, Maringá. Anais […]. Maringá: UEM, 2018.

Road Traffic Act. e-Law Korea. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/kor_service/lawView.do?hseq=64085&lang=ENG  

SOBRE A AUTORA 

Graduanda em licenciatura em história pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é membro da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE). Se interessa pela História das “mulheres de conforto” e demais cultura asiática, relações diplomáticas e estudos de gêneros. E-mail: larissa.mikaely1998@gmail.com

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