Artigos de opinião

ARTIGO DE OPINIÃO| Armadilhas do “K-dream”: a importância do consumo crítico entre os fandoms da Hallyu

Autora: Beatriz Amaro  

Imagem: The Times. Disponível em: https://www.thetimes.com/article/hallyu-how-korean-culture-conquered-the-world-kb2swqwb5.

Já faz cerca de oitenta anos desde que os frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer (2009) cunharam o conceito de “indústria cultural” para designar o processo de transformação que a cultura e a arte viviam nos anos 1930 e 1940. Em suma, os sociólogos foram uns dos primeiros intelectuais a chamarem atenção para o fato de que o capitalismo não só havia engolido, industrializado e massificado a produção de bens físicos, como também já chegara ao campo da cultura e utilizava-se dela como ferramenta ideológica para perpetuar o próprio sistema. Junto a essa noção, alguns alertas: uma vez que a cultura já não nascia do povo e, sim, das grandes corporações e meios de comunicação de massas, a sociedade estaria condenada à alienação e ao consumo acrítico de toda e qualquer forma de entretenimento criado pelas indústrias, que agora contavam com um poder ainda maior de persuasão. 

Anos mais tarde, autores como Kellner (2001) e Soares (2014) trouxeram visões um pouco menos apocalípticas sobre os efeitos da cultura de massas (ou cultura pop) nas audiências, que hoje em dia não são assim tão passivas diante do entretenimento midiático quanto acreditava-se no século passado, quando tudo era novidade (Santaella, 2010; Jenkins, 2022). Apesar disso, ainda não é possível dizer que o consumo realmente crítico se faz presente entre todos os públicos, sequer entre todos os fãs, e quando o assunto está ligado aos consumidores da cultura pop coreana e suas indústrias culturais, o fenômeno da alienação e do deslumbramento excessivo tem ganhado grandes proporções e até certas especificidades. 

Notadamente, o crescente avanço da Onda Coreana (Hallyu) no Brasil e no mundo representa um tipo de subversão da ordem global: países periféricos e não-ocidentais têm conquistado cada vez mais espaço no âmbito da cultura pop mundial, apesar da lógica orientalista ainda dominante (Said, 2003; Mazur, 2023). Mas se por um lado isso indica que os públicos podem estar investidos em um consumo mais descentralizado, por outro, a obsessão pela Coreia do Sul muitas vezes é cega à realidade, que, na prática, é bastante diferente do que é retratado dentro do entretenimento sul-coreano. 

De fato, a Coreia do Sul é um dos lugares mais competitivos do mundo e os valores neoliberalistas permeiam todas as instituições sociais, contribuindo para a enorme desigualdade econômica do país. O sistema escolar sul-coreano, por exemplo, é extremamente rígido e exigente, o que obriga os jovens a estudarem cerca de 14 horas por dia (BBC News Brasil, 2018) em busca de uma vaga em alguma das três melhores universidades nacionais, conhecidas como “SKY” — Seoul National University, Korea University e Yonsei University. O mercado de trabalho, é claro, acompanha a mesma lógica e oferece pouco espaço para filhos de famílias menos favorecidas, que compõem uma parte significativa da população. Segundo o BTI 2024 Country Report — South Korea, publicado pela Bertelsmann Stiftung’s (2024), a taxa de pobreza no país era de 15,3% em 2020, a quarta mais alta entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).  

Não à toa, é dentro da nação sul-coreana que se encontra o maior índice de suicídio do mundo entre os países considerados “desenvolvidos”, com cerca de 23,6 suicídios por 100 mil habitantes, sendo essa a principal causa de morte entre sul-coreanos com idades entre 10 e 39 anos. Entre os fatores associados a essa alarmante estatística estão o estresse intenso imposto pelo sistema educacional, a busca incessante por sucesso profissional e as dificuldades financeiras, que são agravados pela estigmatização da saúde mental e pela falta de um sistema de bem-estar social adequado (Ha, 2023). 

Mesmo diante desse cenário, é claro que a Coreia do Sul se esforça para exportar uma imagem nacional limpa e alavancar seu soft power (Nye; Kim, 2013), isto é, aumentar o seu poder de influência global por meios não coercitivos, utilizando-se da cultura (Figura 1). De maneira prática, isso acontece porque através da publicização da cultura, a indústria do entretenimento sul-coreana não só “aciona, na economia global dos discursos, as formações discursivas voltadas para o lado menos sombrio da existência” (CARRASCOZA, 2020, p. 132), como também promove um estilo de vida “ideal” fortemente ligado a valores neoliberais e permeado por práticas e produtos — comidas, bebidas, cosméticos, eletrônicos etc — tipicamente sul-coreanos, associando características positivas à própria nação e fomentando nos públicos externos o desejo de viver o “korean way of life” (Regatieri, 2017; Palma; Terranova, 2021; Grangeiro, 2021), algo parecido com o que as indústrias culturais estadunidenses fazem desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

 

Figura 1 – Exemplos de dramas coreanos com estética delicada, suave e moderna 

Fonte: Social Nation. 

Por isso mesmo, não é incomum encontrar fãs que alimentam o sonho de uma vida urbana moderna, “cool”, romântica e livre de conflitos políticos e sociais na Coreia do Sul, já que é esse é um discurso comum (embora não seja o único, claro, haja vista a grande pluralidade presente da produção cultural sul-coreana) dos K-dramas e do K-pop (Regatieri, 2017; Palma; Terranova, 2021). Em razão desse mesmo “sonho coreano”, muitos consumidores dessa cultura também sustentam desejos fetichistas em relação a pessoas de ascendência coreana ou asiática, perpetuando práticas profundamente racistas e orientalistas (Katsuo, 2023; Mazur, 2023). 

Aparentemente, a etnia amarela de pessoas comuns tem sido suficiente para despertar um interesse imoderado entre alguns fãs ligados à Hallyu, que muitas vezes apresentam comportamentos ofensivos e violentos, como perseguir, tirar fotos e gravar vídeos não autorizados de asiáticos-brasileiros em locais públicos, afora os comentários inconvenientes dirigidos a essas pessoas, como desabafa a influenciadora Bruna Tukamoto (2024) em um de seus vídeos disponíveis no TikTok: “Já cansei de ouvir gente falando que quer ter um filho ‘coreaninho’, que não pode ver uma pessoa com o ‘olho puxado’ na rua que fica encantada, inclusive aconteceu comigo”. O grande anseio por um “namorado coreano” meigo, gentil e atencioso (características frequentemente incorporadas pelos protagonistas dos K-dramas e pelos idols do K-pop) é facilmente testemunhado nos conteúdos produzidos pelas ditas “dorameiras” em redes sociais como TikTok e Facebook. 

O próprio termo “dorama”, que é largamente utilizado por vários fãs brasileiros de K-dramas sem nenhuma diligência, tem origem japonesa e deveria ser aplicado, única e exclusivamente, para referir-se a dramas televisivos japoneses e não a qualquer drama televisivo asiático (como os coreanos, chineses e tailandeses). De acordo com Mazur (2023, p. 211), “denominar um drama sul-coreano, ou K-drama, de ‘dorama’ é mais uma forma de estereotipar um consumo, além de ativar estruturas históricas de raízes imperialistas existentes na relação entre o Japão e a Coreia.”1 

Devido a essa tendência para o fascínio em relação à cultura sul-coreana, que, claro, é produzido e alimentado pela mídia do país, a figura da “fã de K-drama e K-pop” passou a ocupar um espaço caricato na imaginação do público brasileiro e ganhou até mesmo uma representação na TV Globo. Em “Volta por Cima”, a atual novela das 7 da emissora (Gshow, 2024), a personagem Tati (interpretada por Bia Santana) é uma adolescente totalmente entregue ao “K-dream”, chegando a perseguir Jin (personagem de Allan Jeon) em um dado momento por acreditar que ele é o astro de seu K-drama favorito. 

É necessário frisar, no entanto, que nem todos os consumidores de K-dramas ou K-pop apresentam esses tipos de comportamento. Tratar de representações caricatas requer responsabilidade, pois, frequentemente, o estereótipo da fã histérica, alienada e inconveniente pode servir apenas ao objetivo de ridicularizar os interesses femininos e minar o direito das mulheres de expressarem seus gostos independentemente de sua idade. Para além disso, existem inúmeros movimentos de fãs ligados à Hallyu, sobretudo ao K-pop, apropriadamente reconhecidos por seu engajamento crítico com a indústria e seu poder de mobilização social muitas vezes sem precedentes (Urbano; Mazur; Araujo; Albuquerque, 2021), deixando claro que é perfeitamente possível ser fã da cultura pop coreana sem cair em um fascínio exagerado ou reproduzir comportamentos fetichistas. 

Ainda assim, falar sobre o lado não tão positivo dos fandoms é importante, pois, por vezes, o deslumbramento e a falta de consciência crítica ao consumir o entretenimento midiático da Coreia do Sul representam um perigo para os próprios fãs brasileiros. Um exemplo notável foi o caso de Jackeliny Bastos, uma paraense que se mudou para o país após casar com Lee Jinyong, um homem sul-coreano que conheceu em um aplicativo de relacionamento. De acordo com a reportagem de Vieira (2023) para o G1, nas duas primeiras semanas de casamento o marido se mostrou carinhoso, mas logo em seguida passou a apresentar um comportamento controlador e expulsou Jackeliny da casa onde moravam, abandonando-a sozinha e sem dinheiro em um país estrangeiro (Figura 2). 

Figura 2 – A brasileira Jackeliny com o sul-coreano Jinyong

Apesar de parecer um caso excepcional, há inúmeros relatos de mulheres ocidentais que viajam em busca de um romance ideal para a Coreia do Sul, algo que Kwon (2022) chamou de “efeito Netflix” — uma referência direta à grande quantidade de K-dramas românticos disponíveis no catálogo da plataforma, o que ajudou a popularizar as produções sul-coreanas no mercado global. A maioria desses casos, no entanto, acaba em decepção, pois, na prática, os homens coreanos reais não são tão perfeitos quanto aqueles retratados nos dramas, haja vista que a sociedade sul-coreana, não tão diferente das sociedades ocidentais, ainda é profundamente patriarcal e machista. 

Decerto, isso tudo nos confirma que os públicos consumidores não são simplesmente uma massa ingênua e alienada como acreditava-se no século passado, mas ainda é necessário que os fandoms ligados à Onda Coreana reconheçam suas contradições internas e se engajem em uma análise mais crítica do conteúdo que consomem. Assim como o entretenimento pop produzido nos Estados Unidos ou em outras partes do mundo, a indústria cultural sul-coreana também adota estratégias de marketing sofisticadas e narrativas cuidadosamente construídas para alcançar seus objetivos comerciais e geopolíticos (Nye; Kim, 2013; Palma; Terranova, 2021) e, por isso, é imprescindível que todos nós encaremos o entretenimento midiático com atenção e criticidade. Mais do que nunca, devemos, sim, assumir o lugar de fã, porém de forma consciente e responsável, combatendo a desinformação sobre a cultura coreana no Brasil e, principalmente, o fetichismo amarelo, que ainda é tão presente dentro das comunidades de consumidores da Hallyu. 


REFERÊNCIAS 

 

BBC NEWS BRASIL. A estressante rotina de alunos que passam 14 horas por dia estudando para ‘Enem’ coreano. BBC News Brasil, 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/media-46228533. Acesso em: 22 nov. 2024. 

 

BERTELSMANN STIFTUNG. BTI 2024 Country Report — South Korea. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 2024. 

 

CARRASCOZA, João Anzanello. O enorme rádio: a vida cotidiana e a publicidade num conto de John Cheever. Revista do Programa de Pós-Graduação Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, n. 46, 2020. Disponível em: http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao academica/003016864.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2024.  

 

GRANGEIRO, Sarah Lays Saraiva. A influência do marketing de entretenimento coreano no Brasil. Calea — Caderno de Aulas do LEA, n. 10, 2021, p. 87-100. 

 

GSHOW. Volta por Cima: saiba tudo sobre a nova novela das 7. Gshow, 2024. Disponível em: https://gshow.globo.com/novelas/volta-por-cima/noticia/volta-por-cima-saiba-tudo-sobre-a-nova-novela-das-7.ghtml. Acesso em: 22 nov. 2024. 

 

HA, Serin. Por que Coreia do Sul tem os maiores índices de suicídio entre países desenvolvidos. BBC News Brasil, 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n4gjxr0e3o. Acesso em: 22 nov. 2024. 

 

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. O Iluminismo como mistificação das massas. In: ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 5-44. 

 

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 3. ed. São Paulo: Aleph, 2022.  

 

KATSUO, Hugo. K-pop, masculinidades e pornografia: entre a pornificação de si e o consumo da outridade [dissertação de mestrado]. Niterói: Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, 2023. 

 

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. 

 

KWON, Jake. Efeito Netflix: por que mulheres ocidentais estão indo para a Coreia do Sul em busca de amor. CNN Brasil, 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/efeito-netflix-por-que-mulheres-ocidentais-estao-indo-para-a-coreia-do-sul-em-busca-de-amor/. Acesso em: 22 nov. 2024. 

 

MAZUR, Daniela. A Coreia do Sul e a Hallyu: uma globalização alternativa no mundo multipolar [tese de doutorado]. Niterói: Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, 2023. 

 

NYE, Joseph; KIM, Youna. Soft power and the Korean Wave. In: KIM, Youna (org.). The Korean Wave: Korean Media Go Global. 1. ed. London and New York: Routledge, 2013, p. 31-42.  

 

PALMA, Raíssa de Cássia; TERRANOVA, Bianca Mendes. Arte do Contágio: O Soft Power presente na cultura cinematográfica sul coreana e o consumo de bens por meio da venda do cotidiano. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 44., 2021. Anais […]. Intercom, 2021. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2021/resumos/ij04/raissa-de-cassia-palma.pdf. Acesso em: 22 nov. 2024.  

 

REGATIERI, Ricardo Pagliuso. Development and dream: On the dynamics of K-Pop in Brazil. Development and Society, v. 46, n. 3, 2017, p. 505-522.  

 

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 

 

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2010. 

 

SHIN, Hyunjoon; LEE, Seung-Ah. Introduction: The Road to Popular Music: Regulations, Resistance and Negotiations. In: SHIN, Hyunjoon; LEE, Seung-Ah (org.). Made in Korea: Studies in Popular Music. 1. ed. New York and London: Routledge, 2017, p. 1-10. 

 

SOARES, Thiago. Abordagens teóricas para estudos sobre cultura pop. Logos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 24, 2014. 

 

TUKAMOTO, Bruna. Parte 340. Bruna Takamoto. TikTok, 04 nov. 2024. Disponível em:  https://www.tiktok.com/@bruna.tukamoto/video/7433517615433207045?_r=1&_t=8rYWcuqy29X. Acesso em: 20 nov. 2024. 

 

URBANO, Krystal; MAZUR, Daniela; ARAUJO, Mayara; ALBUQUERQUE, Afonso de. K pop, ativismo de fã e desobediência epistêmica: um olhar decolonial sobre os ARMYs do BTS. Logos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, 177-192, 2021. 

 

VIEIRA, Sílvia. O que se sabe e o que falta saber sobre o caso da brasileira que diz ter sido agredida e expulsa de casa por marido coreano. G1 Santarém e Região — PA, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2023/12/06/o-que-se-sabe-e-o-que-falta-saber-sobre-o-caso-da-brasileira-que-diz-ter-sido-agredida-e-expulsa-de-casa-por-marido-coreano.ghtml. Acesso em 22 nov. 2024. 

 

 

SOBRE A AUTORA 

 

Beatriz Amaro 

 

Graduada em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), integrante da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE) e representante da equipe de Comunicação e Mídia na associação B-ARMYs Acadêmicas, é uma pesquisadora em formação e fã por vocação: passa 100% do tempo tentando equilibrar essas duas skins 

 

E-mail: amarobeatrizgv@gmail.com 

Leave a Reply