Artigos de opinião, Estudos Coreanos

ARTIGO DE OPINIÃO | A prática do Deungdan e a importância dos concursos literários na Coreia do Sul

Autoria: Suéllen Gentil

 Alexsandro Pizziolo

E-mails: suellen.gentil@gmail.com

alex.pizziolo@gmail.com

Foto de Yury Nam. Fonte: Unsplash

No universo de quem escreve literariamente, especialmente de quem aspira ser publicado, não é novidade que a participação em concursos literários pode servir como uma possível porta de entrada para o mercado editorial, além de atribuir algum prestígio, em maior ou menor escala, a depender do prêmio literário em questão. Contudo, não há garantias, e participar desses eventos é como dar um tiro no escuro. Na Coreia do Sul, porém, a participação em concursos tem um peso tão significativo que, a cada ano, mobiliza uma enorme quantidade de pessoas que sonham com uma carreira de escritor/a.

A tradição dos prêmios literários conhecida como sinchunmunye (“arte literária na nova primavera”, em referência à época em que os prêmios são oferecidos) iniciou em 1925 com o Dong-A Ilbo, um jornal fundado em 1920 que se firmou como um dos principais veículos de literatura no país. Em pouco tempo, juntou-se a ele o diário Joseon Ilbo e os demais jornais da época, estabelecendo assim uma tradição que perdura até hoje (Im, 2009, p. 15-16). Estima-se que, atualmente, há mais de 250 prêmios literários na Coreia do Sul, e eles são peça fundamental para o entendimento do funcionamento do sistema literário sul-coreano, diretamente ligados ao reconhecimento da profissão de autor/escritor/poeta.

Os prêmios, comumente organizados por editoras, jornais e revistas literárias, são um passo indesviável na carreira de qualquer um que queira “ostentar” o título de autor ou poeta. Alguns dos principais prêmios são o Prêmio Literário Yi Sang (em homenagem ao autor de Olho-de-corvo), organizado pela editora Munhaksasangsa desde 1977; o Prêmio Hwang Sun-won (em homenagem ao poeta), organizado pelo diário JoongAng Ilbo desde 2001; o Prêmio Literário Shin Dong-yub (também em homenagem a um poeta), organizado pela editora Changbi, a maior editora da Coreia do Sul; e outros como os organizados pela editora Munhakdongne que premiam romances e novos autores, desde 1995 e 2010, respectivamente. Autores como Han Kang, Park Wan-suh, Kim Ki-taek, Park Min-gyu e Cho Nam-joo, para citar apenas alguns publicados no Brasil, foram agraciados com pelo menos um desses prêmios ao longo de suas carreiras.

Segundo Shim (2021), o peso que os concursos literários têm no sistema literário coreano não pode ser comparado aos seus equivalentes em outras culturas. A prática, também chamada de deungdan, o debut no mundo literário, é tratada como um exame de habilitação, equivalente ao vestibular, a um concurso público, ou mesmo ao exame da Ordem dos Advogados. Para entrar no mundo literário, o mundan, o aspirante a autor ou poeta deve esmerar-se em construir o texto perfeito, preferencialmente um conto, gênero que se consolidou como o padrão desses tipos de concurso. O que diferencia o sistema coreano é o fato de que os próprios autores não se consideram autores até que tenham sido premiados em algum deles.

A preparação acaba sendo similar à preparação para um exame como o ENEM ou a Fuvest, só que em vez de ler resumos, assistir vídeo-aulas e resolver simulados, o “vestibulando” prepara o texto perfeito para ser premiado e finalmente poder ser considerado um autor perante o mercado editorial coreano. Tal sistema está ligado não só à cadeia de livros e à publicação de literatura em periódicos literários, mas também a outros tipos de atividade intelectual que esses profissionais venham a desempenhar, como o ensino em universidades, o trabalho com editoras prestigiadas e a concorrência em editais organizados por órgãos governamentais (Shim, 2021, p. 455). A legitimidade que o sistema do deungdan proporciona abre portas para os autores premiados e possibilita sua permanência no sistema literário.

A autora Han Kang, talvez a referência mundial no que se refere à literatura coreana atualmente, venceu, em 2005, o prêmio Yi Sang pela novela “Mancha mongólica”, que posteriormente integraria o volume conhecido como A vegetariana, publicado em 2007, que reúne mais duas novelas da autora, “A vegetariana” e “Árvores em chamas”, respectivamente, e se tornou sucesso de vendas em todo mundo e lançou o nome da autora como uma das principais vozes da literatura mundial quando a tradução para o inglês, de Deborah Smith, ganhou o prêmio International Man Booker em 2016.

Mas a competição árdua não é a única dificuldade que precisa ser enfrentada. Mesmo após ganhar o concurso, escritores e escritoras podem sofrer com a imposição de contratos que nem sempre se adequam às necessidades dessas pessoas. É o caso da escritora Yun I-hyeong que, em 2020, entrou com um processo que exigia um pedido de desculpas da editora Munhaksasang, que organiza o prestigiado Prêmio Literário Yi Sang, por impor termos considerados injustos em seu contrato de publicação.

Escritora Yun I-hyeong. Fonte: Korea Times

Segundo matéria publicada no jornal The Korea Times, Yun criticou a organização do prêmio por impor cláusulas que obrigam os vencedores a transferir os direitos autorais de suas obras por três anos, o que ela considera uma prática enganosa e desrespeitosa para com os/as autores/as. A escritora expressou sua frustração ao declarar que está “cansada das práticas injustas no mundo literário” (Kwak, 2020) e que não deseja mais continuar escrevendo sob essas condições. Além disso, Yun afirmou que gostaria de devolver o prêmio em sinal de sua desaprovação.

A decisão de Yun ecoa o sentimento de outros escritores, como Kim Keum-hee, Choi Eun-young e Lee Ki-ho, que boicotaram a premiação em protesto contra as mesmas cláusulas contratuais. Kim, por exemplo, revelou em uma rede social que o contrato impedia o uso de seu texto como parte de um livro, o que ela considerou uma grave violação de seus direitos como autora. Outras escritoras, como Choi Eun-mi e Jang Ryu-jin, manifestaram solidariedade à Yun e criticaram a postura da organização.

Embora os concursos literários na Coreia do Sul desempenhem um papel crucial na legitimação de novos autores e na vitalidade do sistema literário, as disputas em torno dos contratos destacam a necessidade de equilibrar tradição com justiça e transparência. É importante que a proteção dos direitos autorais e o respeito ao trabalho criativo sejam pilares para que o prestígio associado a esses prêmios continue a impulsionar a carreira de quem escreve, sem se transformar em um obstáculo.

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Referências:

Fulton, Bruce. The Munhak Tongne Phenomenon: The Publication of Literary Fiction in South Korea Today. Journal of Global Initiatives: Policy, Pedagogy, Perspective. Vol. 5, n. 2, p. 130-137, 2011.

Im, Yun Jung. Introdução. In: Im, Yun Jung. Contos contemporâneos coreanos. São Paulo: Landy, 2009. p. 15-23.

Jang, Eunsu. South Korea’s Literary Awards. K-Book Trends. Jeonju, 31 jul. 2018. Disponível em: https://www.kbook-eng.or.kr/sub/topic.php?ptype=view&idx=790&page=1&code=topic. Acesso em: 29 ago 2024.

Kwak, Yeon-soo. Yun I-hyeong leads writers protesting against ‘unfair’ contracts. The Korea Times. Seul, 02 fev. 2020. Disponível em: https://www.koreatimes.co.kr/www/culture/2024/08/135_282786.html. Acesso em: 29 ago. 2024.

Shim, Bo-Seon. Poets with titles: Korea’s deungdan system. New Writing. Vol. 18, n. 4, p. 452-465, 2021.

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