Artigos de opinião, Estudos Coreanos

ARTIGO DE OPINIÃO | Notas sobre a escritora sul-coreana Han Kang

Autora: Maria Gabriela Pedrosa
Imagem: Site oficial da Han Kang (2024)

Han Kang nasceu em 1970 na cidade de Gwangju, porém desde que tinha nove anos cresceu em Suyuri, Cholla-namdo, na capital Seul¹. Isso porque em 19 de Janeiro de 1980 o pai de Han Kang, Han Seung-Won, abdicou de ministrar aulas para se dedicar ao ofício de escritor em tempo integral, visando melhores oportunidades. Assim, toda a família o acompanhou. Quando deixou a cidade, a autora lembra de que era um dia muito frio.  À época, Gwangju era uma cidade interiorana e quieta, com algumas universidades. Quatro meses após a saída da família, aconteceu, em maio de 1980, o massacre de  Gwangju.  A revolta durou dez dias, de 18 a 27 de maio. Portanto, esse fato biográfico poderia ser apenas um dado wikipedesco, mas a revolta que ocorreu em Gwangju na década de 1980 marcou não só a autora, como toda a sua família, uma vez que por terem saído da cidade apenas quatro meses antes da revolta, eles carregaram por anos um sentimento de culpa, pois, como relembra Han Kang, era como se algumas pessoas tivessem se machucado no lugar deles; e esse sentimento teria a afetado profundamente (Lund, 2019)².

Essa memória perseguiu a autora ao longo do tempo, e é comum ler nas suas entrevistas a menção a esse episódio. Além disso, foi um momento em que Han Kang percebeu que o ser humano pode escolher trilhar o caminho da violência ou o caminho da dignidade e da força. As memórias na cidade de Gwangju juntamente aos livros dispostos na biblioteca do pai de Han Kang, a qual desde jovem era uma ávida leitora, desenharam uma interrogação na autora que, durante a sua adolescência, dilui-se em questões mais densas, tais como: quem sou eu? O que devo fazer nesse mundo? Por que todo mundo tem de morrer? Por que existe dor humana? Qual o significado de ser humano? Ansiando encontrar respostas para esses questionamentos intermináveis, decidiu se aventurar na escrita, seguindo, portanto, os passos paternos.
Do mesmo modo, como bem lembra Yun Jung Im em nota biográfica sobre Han Kang na edição brasileira de A vegetariana, publicada em 2013, a autora tem no sobrenome o nome do rio mais famoso da Coreia do Sul: o rio Han. Portanto, outro momento histórico que cruza a linha biográfica de Han Kang é o “milagre do rio Han”, que, como explica a tradutora,

[…] compreende o período entre a década de 60 e os meados da década de 90 do século XX. Durante esse tempo o país passa por um progresso frenético de rápida industrialização e urbanização, avanço tecnológico, boom educacional, aumento exponencial nos padrões de vida, modernização, democratização e globalização, ao mesmo tempo em que busca se recuperar da guerra fratricida que deixou mais de três milhões de mortos e o território totalmente devastado. O país, que após a Guerra era um dos mais pobres do mundo, milagrosamente se transformaria numa economia globalmente influente e conhecida pelos seus conglomerados multinacionais como Samsung, LG e Hyundai-Kia, em apenas 50 anos. (Im, 2013, p. 187).

Esse momento histórico frenético impacta os autores que estão produzindo nas décadas de 1990 e 2000, principalmente. Consequentemente, Han Kang, como uma autora da sua época, não deixaria de refletir sobre essas mudanças e como as estruturas sociais, principalmente, se modificariam após tais acontecimentos.
Já em relação à sua educação, Han Kang estudou Literatura Coreana na Universidade de Yonsei, uma das universidades mais prestigiadas da Coreia do Sul, conhecida como parte da SKY3, e, após se graduar, trabalhou como jornalista. Também já fez parte do Programa Internacional de Escrita da Universidade de Iowa, em 1998. Atualmente ensina criação literária no Instituto de Artes de Seoul (Santos, 2017; Im, 2013). É possível perceber que a literatura sempre rondou a vida dessa autora, tanto no espaço pessoal quanto no acadêmico. No começo da fase adulta, então, Han Kang teve sua estreia no meio literário como poeta, em 1993, com o texto “Winter in Seoul”4, publicado na edição de inverno da revista Literatura e Sociedade. A partir deste ponto, a autora publica ininterruptamente obras de gêneros diversos, como poesias, contos e romances. Os temas explorados vão desde narrativas com tons mais intimistas, perpassando por temáticas de cunho existencialistas, até rememorações críticas de traumas históricos e críticas às estruturas sociais. 

Já caminhando por algumas das obras publicadas por Han Kang até o momento, temos as seguintes: 여수의 사랑 / Yeonsu” (conto, 1995); 검은 사슴 / Black Deer (romance, 1998); 내 여자의 열매 / Fruit of my Woman” (conto, 2000); 그대의 차가운손 / Your Cold Hands (romance, 2002); A vegetariana (2007); 바람이 분다, 가라 The Wind is Blowing (romance, 2010); 희랍어 시간 / Greek Lessons (romance,2011); 서랍에 저녁을 넣어 두었다 / I Put the Evening in the Drawer” (poesia, 2013); 소년이 온다 / Atos humanos (romance, 2014); 흰 / O livro branco (romance, 2016);작별하지 않는다 / I Do Not Bid Farewell (romance, 2021).

Além do expressivo número de obras literárias concebidas em um curto espaço de três décadas de atividade, Han Kang ainda detém trabalhos artísticos no campo da música, com o álbum 가만가만 부르는 노래 / Quiet Songs (2007), e nas artes visuais, como performances, instalações e gravações em vídeo5. Esse tipo de informação no site oficial da autora já assinala sua predileção para o entrecruzamento de linguagens artísticas e midiáticas. Essa característica irá permear todo o corpo de obras da autora.
Esse aspecto da estética de Han Kang pode ser visto também na sua resposta à pergunta sobre quais autores inspiram o seu trabalho, em uma entrevista para o Lit Hub (2016, s.p., tradução nossa, grifos nossos).

BP: Quais autores inspiram seu trabalho e por quê?
HK: Não é fácil para mim nomear escritores favoritos, porque eles sempre mudam.
Eu me sinto inspirada pelas artes visuais também, talvez até mais. No entanto, também é difícil para mim nomear artistas específicos (No entanto, coloco um dos autorretratos de Käthe Kollwitz na parede do meu quarto onde quer que eu me mude).6

Só por um instante, nos deteremos na figura de Käthe Kollwitz7 (1867 – 1945), apontada como uma inspiração para Han Kang. Acredito que essa não é a única artista tomada como referência pela autora sul-coreana, mas detendo o olhar na estética e nos temas retratados por Kollwitz, podemos entender um pouco da mente criativa de Han Kang.
Käthe Kollwitz foi uma desenhista, pintora, gravurista e escultora alemã, que estabeleceu uma visão estética centrada em figuras femininas e na classe trabalhadora. Käthe se diferenciava em razão da profundidade que dava às suas figuras e aos autorretratos a partir de linhas que mesclavam o claro e o escuro, principalmente com o uso das cores preto e branco (
Figura 2).
Além disso, as criações da artista alemã foram movidas fortemente pela dor do luto de ter perdido seu filho na Primeira Guerra Mundial. Em um trecho do seu diário, ela diz que tinha como “[…] dever expressar os sofrimentos dos homens, os sofrimentos intermináveis amontoados no alto das montanhas”8 (Kollwitz, s.p., tradução nossa). A palavra sofrimento retratada duas vezes, numa repetição pouco poética, na verdade, pode ser vista também naqueles questionamentos existenciais da jovem Han Kang e no seu desejo de retratar o que é ser humano.
Além disso, é interessante que a escritora sul-coreana pontue que uma de suas artistas favoritas seja ocidental, pois mostra o que falávamos anteriormente sobre o milagre do rio Han e sua abertura internacional, que possibilitou aos artistas coreanos terem uma troca cultural mais amplificada. Essa preferência soa como um bom exemplo de como os escritores da geração da literatura sul-coreana contemporânea dialogam de forma aproximada com artistas e estéticas estrangeiras em razão do fenômeno globalizante que se perpetuou na Coreia do Sul, principalmente depois das Olimpíadas de Seul, em 1988.

Figura 2 — Woman in the Lap of Death (1920/1921), litogravura de Käthe Kollwitz

Fonte: Site de Käthe Kollwitz (2023)

Han Kang não só tem uma proeminente poética, como também sua produção febril tem gerado frutos no meio literário, pois ela é tida como uma das mais prestigiadas escritoras sul-coreanas contemporâneas, angariando diversos prêmios importantes na Coreia do Sul, com destaque ao Prêmio Escritor de Excelência do Diário de Hanguk (1995); ao Prêmio Coreano de Literatura em Prosa (1999); ao Prêmio de Jovem Artista de Hoje do Ministério da Cultura e do Turismo (2000); e, em especial, ao prêmio literário Yi Sang (2005), que é realizado pela editora Munhaksasangsa desde 1977, sendo uma das premiações literárias mais importantes da Coreia do Sul (Guimarães, 2021; Im, 1999).

Internacionalmente, evidencia-se o êxito no prêmio Booker internacional em 2016 pela tradução para a língua inglesa de A vegetariana9, consagrando-a como a primeira escritora sul-coreana a ser indicada nesta premiação. O romance conta atualmente com mais de 61 traduções (cf. Digital Library Korean Literature, 2023), sendo que muitas dessas ocorreram após a vitória no prêmio. Com a atenção mundial voltada à autora, principalmente após 2016, nota-se que ela vem sendo bastante vocal acerca da sua criação literária.

Em entrevista ao próprio site do prêmio Booker internacional, The Booker Prizes, a autora coreana reflete que escreveu A vegetariana entre os anos de 2003 e 2005, publicando-o de forma completa apenas em 2007. Então, recorda da “estranheza” positiva de ganhar um prêmio em 2016 com um romance escrito quase uma década antes. Assim, arremata refletindo que

[…] Desde que ganhei o prêmio, minhas outras obras, incluindo Atos Humanos, O Livro Branco e Greek Lessons, bem como meu romance mais recente, We Do Not Part, foram ou estão sendo traduzidos para vários idiomas. Sou grata pelo prêmio Booker internacional ter ajudado minhas obras a alcançar um público mais amplo em diferentes culturas.10 (Kang, 2023, s.p., tradução nossa)

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Notas de rodapé:

¹ Kang, Han. Biography. Disponível em: https://han-kang.net/Biography. Acesso em: 2 jun. 2022.

² Esse fato pode ser visto com mais clareza em seu romance Atos humanos (2014).

³ Sigla usada para se referir às três Universidades mais prestigiadas e concorridas da Coreia do Sul, sendo elas: Universidade Nacional de Seoul (SNU); Universidade da Coreia; e a Universidade de Yonsei. 

⁴ Durante o texto optou-se por deixar os livros/textos que não têm tradução ainda para a língua portuguesa com os títulos em coreano e/ou em inglês, a fim de não incorrermos em simplificações dos textos e das histórias ao fazer traduções literais.  

⁵ Kang, Han. Artwork. Disponível em: https://han-kang.net/Visual-Arts. Acesso em: 4 jun. 2022.

⁶ No original: BP: ”Which authors inspire your work, and why?/ HK: It isn’t easy for me to namecheck favorite writers because they always change. I feel inspired by visual art as well, perhaps even more. However, it is also difficult for me to name particular artists. (Yet I put one of the self portraits of Käthe Kolwitz on the wall of my room wherever I move).” 

⁷  Cf. Käthe Kollwitz. MoMA. Disponível em: https://www.moma.org/collection/works/71889?artist_id=3201&page=1&sov_referrer=artist. Acesso em: 15 jun. 2022. 

⁸ No original: “[…] It is my duty to voice the sufferings of men, the never-ending sufferings heaped mountain-high.” 

⁹  O título em língua inglesa é The Vegetarian. 

¹⁰  No original: “I wrote The Vegetarian between 2003 and 2005, and published it as a full-length novel in2007. I remember thinking that it was rather strange (in a good way) to win the International Booker Prize in 2016, more than a decade later. Since winning the prize, my other works including Human Acts, The White Book and Greek Lessons, as well as my most recent novel, We Do Not Part, have been or are being translated into several languages. I’m grateful that the International Booker Prize has invaluably helped my works to reach a wider readership in different cultures.”

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Referências:

HAN, Kang. Uma vegetariana . Tradução de Jae Hyung Woo. São Paulo: EditoraTodavia, 2018.
HAN, Kang.
Uma vegetariana . Tradução de Yun Jung Im. Editora Devir, 2013.
HAN, Kang.
Atos humanos . Tradução de Ji Yun Kim. São Paulo: Editora Todavia,2021.
LUND, Cristiano.
Entrevista com Han Kang : o horror da humanidade. Museu de Arte Moderna de Louisiana, 2019. Disponível em: https://channel.louisiana.dk/video/han-kang-thehorror-of-humanity. Acesso em: 02 jun. 2022.

SOBRE A AUTORA

Maria Gabriela Pedrosa

Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),  Especialista em Literatura Brasileira pela FAFIRE, é membro da Curadoria de  Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE). Se interessa pela relação da Literatura e  demais Artes, estudos ecocríticos, estudos que relacionam literatura e memória, além  de ter um interesse particular na Literatura Coreana. E-mail:  mariagpedrosa@gmail.com .

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