Artigos de opinião, Estudos Coreanos

ARTIGO DE OPINIÃO | O sentimento “antiamericano” representado na indústria cinematográfica sul-coreana contemporânea

Isadora Martins Duarte
isabrmart@hotmail.com

Imagem: Welcome to Dongmakgol (Movie, 2005, 웰컴 투 동막골)

Fonte: Compilação do autor1

Nos últimos anos, a indústria cinematográfica sul-coreana, que é uma das mais importantes da Ásia, vem se destacando internacionalmente, recebendo inúmeros prêmios e reconhecimentos. Mas há um tópico que chama a atenção dentre os demais na produção audiovisual sul-coreana: a representação estadunidense. O antiamericanismo presente em algumas produções levanta questões sobre a relação entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos.

O termo “antiamericanismo” não possui uma definição concreta e autores divergem sobre seu significado, origens e como se manifesta. De forma mais generalizada, o sentimento antiamericano pode se referir a uma atitude de oposição ou hostilidade em relação aos Estados Unidos, aos estadunidenses, à política e/ou à cultura. Kim Jun-Wung (1994) define o antiamericanismo sul-coreano mais como uma crítica do povo coreano às políticas e à realidade dos Estados Unidos do que uma hostilidade ou rejeição total ao país Ocidental. O antiamericanismo pode ser compreendido como uma reação natural à forte presença militar e cultural estadunidense na Coreia do Sul, além de uma memória da Guerra da Coreia (1950- 53) e suas consequências no território nacional.

Esse sentimento que se pode observar atualmente foi sendo construído por décadas ao longo da história da península coreana no século XX, em especial a partir da Segunda Guerra Mundial. Até o fim do conflito global em 1945, a Coreia estava ocupada pelo Império do Japão desde 1910 quando foi anexada. Com a rendição japonesa e o fim da guerra, a península teve seu território dividido em norte e sul ao longo do Paralelo 38º. O Sul contava com a presença dos Estados Unidos que manteve forças pró-nipônicas no policiamento do país. Em 1948 ocorrem as primeiras eleições na porção Sul da península e Syngman Rhee foi estabelecido presidente, cargo que ocupou até 1960 após uma reeleição sob acusações de fraude e marcada por protestos. Durante o tempo em que esteve no comando, Rhee impôs uma ditadura militar que possuía apoio dos Estados Unidos. Em 1962, Park Chung-Hee deu um golpe de Estado e assumiu o poder, instaurando uma nova ditadura militar também apoiada pelos EUA em seus esforços anticomunistas, porém com divergências quanto ao desenvolvimento econômico (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, 2015).

As ditaduras militares sul-coreanas prosseguiram com Chun Doo-Hwan até 1988, quando Roh Tae-Woo foi eleito através de eleições diretas e livres. De acordo com Cumings (1997), a ditadura de Chun Doo Hwan na década de 1980 provocou um esvaziamento das universidades e os jovens se misturaram à classe trabalhadora, tornando o setor industrial um lugar de organização das massas e abrindo um espaço cultural e intelectual nesses ambientes. O autor (1997, p.386) argumenta ainda que essa organização intelectual num espaço operário, somado a greves nas indústrias e ao Massacre de Gwangju (1980), propiciou uma atmosfera de ‘tendências radicais’ que teriam acentuado o sentimento de antiamericanismo do povo coreano que começou a associar a repressão da ditadura ao imperialismo estadunidense.

Embora esse espaço intelectual tenha se formado e as pessoas tenham começado a se radicalizar, a liberdade política para expressar tais pensamentos contrários ao regime através da arte era limitada. Dan Ryan (2012) explica que os governos sul-coreanos possuíam o controle da indústria cinematográfica desde a Segunda Guerra Mundial e as ditaduras militares que se seguiram após o fim da Guerra da Coreia (1950-1953) foram repressivas silenciando a oposição e as críticas públicas aos Estados Unidos. Dessa forma, havia um controle do que podia ou não ser exibido em filmes e com isso o governo conseguiu promover o anticomunismo e apagou as representações negativas do país norte-americano.

Desse modo, com a redemocratização do país, o antiamericanismo começa a aparecer no cinema coreano na década de 90. Com a primeira eleição direta e livre em 1993 e, consequentemente, o fim dos regimes militares, permitiu-se a inserção de novas temáticas na indústria cinematográfica. E a partir de 1998, o novo presidente eleito Kim Dae-Jung (mais tarde laureado com o Nobel da Paz pelo seu trabalho diplomático com a Coreia do Norte) extirpou a Agência de Planejamento de Segurança Nacional (ANSP) que operava sob a Lei de Segurança Nacional cuja maior preocupação era perseguir a oposição doméstica e passou a empenhar-se contra as ameaças estrangeiras à segurança nacional. Essa medida permitiu maior liberdade de expressão e foi o ponto de virada para a inserção do sentimento antiamericano entre o povo e nas produções artísticas.

Cumings (1997) afirma que a população mais velha, que vivenciou o período da Guerra, possui um sentimento de gratidão pelos Estados Unidos, já que lutaram pelo Sul durante a Guerra da Coreia. Kim Jun-Wung (1994) acrescenta que se há um sentimento antiamericano entre a população mais velha se dá por uma resistência ao estrangeiro invasor cuja cultura ameaça o modo de vida tradicional. Em contrapartida, a população mais nova se torna cada vez mais nacionalista e ressentem a presença estadunidense no país. Portanto, deve-se notar que, ainda que exista um antiamericanismo na Coreia do Sul, grande parte da população também é favorável aos norte-americanos.

Kim (2002) aponta que o antiamericanismo cresceu especialmente a partir da década de 2000 e lista as bases militares estadunidenses como uma das razões para tal sentimento, além de mencionar que intelectuais coreanos culpam os EUA pelo início da Guerra da Coreia. Além disso, pode-se citar outros eventos que contribuíram para a fomentação desse sentimento, tais como: o Massacre de Gwangju em 1980; as mulheres vítimas de prostituição forçada para soldados estadunidenses; a morte de duas adolescentes de 14 anos atropeladas por um veículo militar estadunidense; e, mais recentemente, a Defesa Terminal de Área de Alta Altitude (THAAD), um sistema de mísseis antibalístico dos Estados Unidos instalado em território sul-coreano.

Ademais, há uma crescente valorização do orgulho nacional, da soberania e da independência. Segundo Kim (2002), em uma pesquisa de opinião pública realizada em fevereiro de 2002 com 1.1132 pessoas, 62,9% possuíam sentimentos desfavoráveis em relação aos EUA e sua política em relação à Coreia do Norte, e 56% acreditavam que o antiamericanismo estava se fortalecendo na Coreia do Sul. Já uma pesquisa feita em maio do mesmo ano com 1.0003 pessoas entrevistadas apontou que 56% da população gostaria de manter a aliança entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, enquanto 31% achava que o país deveria superar a diplomacia centrada nos EUA, e 10% gostaria que a Coreia mantivesse distância do país norte-americano (LARSON, LEVIN, BAIK, SAVYCH, 2004).

E uma das formas que os sul-coreanos encontraram para expressar esse sentimento foi por meio do cinema. Com o novo momento pós-redemocratização, cineastas começaram a incluir a realidade e a história dos coreanos em seus filmes a fim de preservar a memória pública e contar a história que havia sido deturpada por regimes revisionistas. Diversas produções coreanas retratam os Estados Unidos e/ou estadunidenses de forma caricata, pejorativa ou negativa, colocando-os muitas vezes no papel de antagonista. Dan Ryan (2012) argumenta que filmes podem expor os sentimentos de um povo e oferecem um contexto que justifique o sentimento antiamericano. Um exemplo dessas produções é O Hospedeiro (2006), produção do diretor vencedor do Oscar de Melhor Filme com Parasita (2019), Bong Joon-Ho. O filme traz diversas críticas que podem ser direcionadas aos norte-americanos, como, a título de exemplo, a poluição do Rio Han debatida no começo do filme, em que pode ser percebida uma referência ao incidente no ano 2000, quando soldados americanos despejaram 76 litros de formaldeído neste rio. No filme, esse despejo de químicos provoca uma mutação em um anfíbio que gera uma criatura grande, de aparência monstruosa e que se alimenta de humanos. A criatura aparece em um rio próximo a um parque e sai da água para atacar pessoas, o evento acaba no desaparecimento de Hyun-Seo, uma criança levada para dentro da água pelo monstro. A família disfuncional da menina se une para procurá-la enquanto as autoridades não ofereceram ajuda.

A produção também retrata o controle operacional e militar que os EUA possuem sobre a Coreia, algo que na realidade desperta diversos movimentos e protestos exigindo a saída dos estadunidenses da península. Em certo momento do filme, é mostrado como os estadunidenses são mais valorizados do que os próprios sul-coreanos quando um soldado é homenageado em rede nacional por ajudar pessoas no ataque da criatura no parque, enquanto nativos não são lembrados. Além disso, os Estados Unidos inventam uma história para encobrir a origem da criatura e tirar de si a responsabilidade sobre os ocorridos.

Outros dois filmes que trabalham com a temática do antiamericanismo são: Bem Vindo à Aldeia (2005) de Park Kwang-Hyun e Swing Kids – No Ritmo da Liberdade (2018) de Kang Hyeong-Cheol. O primeiro é ambientado na Guerra da Coreia e retrata a união entre soldados sul e norte-coreanos após ficarem perdidos em um vilarejo sem contato com o resto do mundo. Os primeiros momentos do encontro entre os “inimigos” são marcados por conflitos, com os soldados de ambos os exércitos apontando armas um para o outro durante a noite com uma chuva de plano de fundo, que não dava sinal de desistência. Ao longo da produção, os soldados passam a se vestir como o povo do vilarejo e não são mais representados com o uniforme de seus respectivos exércitos. Os soldados se unem para ajudar o vilarejo a recuperar mantimentos que haviam sido perdidos em uma explosão durante o primeiro encontro entre os militares, é por intermédio dessa cumplicidade que eles desenvolvem uma amizade. É um filme antiguerra que levanta o desejo de reunificação da península por meio dos personagens dos soldados. Os Estados Unidos são representados na película novamente como aquele que detém o controle sobre o país asiático, chegando a bombardear um vilarejo para resgatar um soldado seu.

O segundo filme é também ambientado na mesma época e traz críticas à atuação dos EUA na Guerra e menciona os abusos e as violações dos direitos humanos por parte dos Estados Unidos em um campo de prisioneiros em Geoje, ao passo que o narrador afirma que um campo de prisioneiros estadunidenses na Coreia do Norte respeitava os direitos estabelecidos pela Convenção de Genebra. Por meio desse panorama, um general estadunidense exige a presença de um grupo de dança para que pudessem mostrar à imprensa internacional que os direitos dos prisioneiros não estavam sendo violados. Esse grupo, composto por um militar estadunidense, uma tradutora sul-coreana, um prisioneiro sul-coreano, um norte-coreano e um chinês, junta-se para dançar sapateado.

O prisioneiro norte-coreano, Ki-Soo, visto como um herói, rejeitou o grupo num primeiro momento, não querendo ceder a um produto cultural dos Estados Unidos, embora tenha se encantado pela dança. A obra cinematográfica segue os ensaios de sapateado e as individualidades de cada integrante do grupo, trazendo cenas em que uma das personagens expressa uma ideia utópica de que não haveria mortes se as pessoas não soubessem o que é capitalismo ou comunismo, além de lembrar que os coreanos são o mesmo povo e deveriam parar de lutar entre si.

Assim como Bem Vindo à Aldeia (2005), Swing Kids – No Ritma da Liberdade (2018) é um filme antiguerra, que traz uma mensagem contra ideologias, no caso socialismo e capitalismo, clamando pela união do povo coreano. Esse aversão a ideologias fica explícita quando no filme de Kang Hyeong-Cheol a apresentação de dança é nomeada como “Foda-se Ideologia” e que os integrantes estão participando somente pela arte. Embora aqui caiba uma discussão sobre partidarismo e arte, não abordaremos esse tópico, pois a intenção é relatar o filme e seu objetivo, que, em razão de um nobre sentimento de ver um povo que está há décadas dividido se reunir, adota notavelmente uma posição apolítica e de indiferença quanto ao ‘tomar partido’ frente às duas ideologias envolvidas no conflito. Porém, deve-se salientar que uma posição apolítica é uma posição política4, especialmente se tratando de uma guerra, como no caso retratado em Swing Kids. E, indo na contramão do que pretende, a película tem a intenção de unir o povo coreano como um só, se posiciona politicamente, uma vez que no filme é retratado que historicamente a reunificação é um desejo de ambas as Coreias (embora sob condições e circunstâncias diferentes),
algo que é entravado pelos Estados Unidos.

Os filmes são uma forma do povo coreano expressar seus sentimentos e opiniões sobre a situação política da Coreia do Sul, que está ligada à história e ao contexto sociopolítico da península coreana. Eles permitem que coreanos de diferentes origens e perspectivas tenham suas vozes ouvidas, além de conseguirem compartilhar experiências particulares ou coletivas do meio em que vivem com a comunidade internacional, especialmente com a crescente popularização da cultura coreana no mundo. O antiamericanismo presente nas produções culturais coreanas é uma forma legítima de expressão artística e política, é um meio de expressão, reivindicação e memória para o povo coreano, permitindo que eventos históricos, como a Guerra da Coreia, sejam lembrados e a consciência sobre as lutas e os movimentos de resistência dos coreanos seja levantada.


NOTAS DE RODAPÉ

1 Colagem a partir de imagens coletadas no site www.imdb.com.

2A amostragem foi retirada diretamente da fonte primária. Uma pesquisa feita pela Gallup Korea e publicada em 2004 pelo Sisa Journal, o autor da matéria é Park Sung-Jung.

3A amostragem foi retirada do artigo Ambivalent Allies? A Study of South Korean Attitudes Toward the U.S. de 2004.

4Em sua obra “Odeio os Indiferentes: escritos de 1917”, o filósofo Antonio Gramsci versa sobre partidarismo: “Quem vive verdadeiramente não pode não ser cidadão, assumir um lado. […] A indiferença é o peso morto da história. […] A indiferença opera com força na história. Opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; […] O que se passa não resulta tanto dos desejos de alguns como da massa dos homens que abdicam de sua vontade, deixam acontecer, permitem o entrelaçamento de nós que posteriormente apenas a espada pode romper, aceitam a promulgação de leis que depois só a revolta pode revogar, deixam subir ao poder homens que apenas os motins poderão derrubar. A fatalidade que parece dominar a história não é senão aparência ilusória da indiferença, do absenteísmo.” (2020, p. 29).


REFERÊNCIAS

CUMINGS, Bruce. Korea’s place in the sun: a modern history. 1997. Norton. United States of America. Updated Edition.

DUARTE, Isadora M.; QUELER, Jefferson J. Conflito de memórias: o antiamericanismo presente em filmes sul-coreanos sobre a Guerra da Coreia (2006- 2018). In: ENCONTRO DE SABERES 2022 – XXX SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 2022, Mariana. Anais do SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA […]. Ouro Preto: UFOP, 2022. Tema: Disponível em: https://www.encontrodesaberes.ufop.br/anais/seic/. Acesso em: 26 abr. 2023.

GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes [recurso eletrônico]: escritos de 1917; seleção, tradução e aparato crítico Daniela Mussi, Alvaro Bianchi. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2020.

KIM, Jinwung. The Nature of South Korean Anti-Americanism. 1994. Korea Journal, 34(1), p. 36-47.

KIM, Seung Hwan. Anti-Americanism in Korea. The Washington Quarterly, Winter 2002-03, 2002.

LARSON, Eric V.; NORMAN, D. Levin; BAIK, Seonhae; SAVYCH, Bogdan. Ambivalent Allies? A Study of South Korean Attitudes Toward the U.S. Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2004. Disponível em: https://www.rand.org/pubs/technical_reports/TR141.html.

PARK, Sung-Jung. “미국이 더 싫어졌다” 56.1%. 2002. Sisa Journal. Disponível em: https://www.sisajournal.com/news/articleView.html?idxno=79187. Acesso em: 28 jun. 2023.

RYAN, Dan. Anti-Americanism in Korean Films. Colorado Journal of Asian Studies 1, no.1, 2012, p. 94-109.

VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz; MELCHIONNA, Helena Hoppen. A Revolução Coreana: o desconhecido socialismo Zuche. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp. 2015.


Isadora Martins

Itabirana de ferro, historiadora pela UFOP, pós-graduanda em História Social e Contemporânea, professora e pesquisadora associada ao CEÁSIA-UFPE.

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