Jayanne Balbino Soares
Email: jayannebs@id.uff.br
Maria Luiza Schaffer Isnard
Email: luiza_maria@id.uff.br
Criança chorando, mulher abandonada e ao fundo escombros do que um dia foi a cidade onde moravam. Tudo aquilo que conheciam havia sido completamente destruído pelos comunistas. Terra morta.
Foram essas algumas das primeiras imagens a chegarem no Brasil sobre a Guerra da Coreia (1950 – 1953). Em 2023, completa-se 70 anos do Acordo de Armistício, momento esse que segue guardado na memória dos brasileiros como demonstra os dados coletados pelo KOFICE (2021) – pesquisa feita com pessoas de diversos países sobre quais são “as imagens mais associadas” à Coreia do Sul. Entre os brasileiros, apareceu na quinta posição, a península asiática como uma “área de ameaça nuclear/risco de guerra da Coreia do Norte”. Mas, afinal, de que maneira esse imaginário se construiu no Brasil?
Para compreendermos isso, voltaremos um pouco no tempo para quando houve o cisma coreano, entre o lado capitalista e o socialista, e como esse momento chegou às páginas de jornais brasileiros. Nesse sentido, será utilizado como material de análise um dos maiores jornais da época, O Cruzeiro, quefoi responsável pela cobertura de eventos históricos mundiais entre as décadas de 1940 e 1950 (SOTANA, 2017). Assim, realizaremos uma breve análise da fotorreportagem Seoul — Terra morta (1951), que foi uma colaboração entre Luís Canázio e Luciano Carneiro, enviados pelo jornal O Cruzeiro para cobrir as disputas na Coreia. Canázio ficou junto aos demais correspondentes de guerra, enquanto Carneiro se lançou junto aos soldados estadunidenses na Operação Tomahawk (CANÁZIO, 1951, p. 65). Esse evento possibilitou que o Brasil fosse um dos 3 países que tiveram jornalistas documentando o cotidiano no lado estadunidense do front — sendo o único sul-americano.
Canázio ficou encarregado do texto da matéria e Carneiro das fotografias que a ilustraram. Luciano Carneiro (1926 – 1959) é considerado um dos maiores representantes do fotojornalismo brasileiro e cobriu diversos acontecimentos internacionais como a Guerra da Coreia e a recuperação de Hiroshima (IMS). Canázio, por sua vez, não teve o mesmo destaque que seu companheiro e, dessa forma, possui uma escassa literatura acadêmica sobre sua carreira.
Dividimos este artigo em duas partes, a primeira analisa uma de suas imagens e a segunda comenta trechos do texto, destacando os teores orientalista e anticomunista.
- A imagem
A matéria objetivava apresentar aos brasileiros “o verdadeiro e trágico sentido” da Guerra da Coreia “para o mundo ocidental” (CANÁZIO, 1951, p. 76). Seguimos, então, para a análise da imagem da sua capa.
A imagem que anuncia o começo da reportagem e a sua manchete aparecem em conflito. A foto apresenta uma mulher amamentando um bebê com a ajuda de um homem. A legenda de Carneiro nos informa que tanto a mulher quanto o homem e o bebê eram estranhos um do outro até serem colocados nessa circunstância bélica — que “nem a infância é poupada”. Frente a isso, essa “mulher do povo” e esse homem se unem para resguardar essa criança tal como uma família (CARNEIRO, 1951, p. 65). Os três já existiam antes desse encontro, contudo a criança apenas pôde sobreviver após essa união. As vestimentas do casal também apresentam elementos importantes: o homem com paletó e cachecol, agasalhos característicos do Ocidente, e a mulher com um hanbok branco de algodão, roupa tradicional coreana. Tudo isso nos conduz a entender que o encontro de ambos retrata a junção entre o Ocidente e Oriente, condensada na figura do bebê que se apresenta simbolicamente como a Coreia do Sul, um país que apenas pode se fortalecer a partir dessa união.
No plano de fundo, é possível observar uma criança que olha para o bebê com um semblante preocupado. A criança encara o processo de amamentação atenta, tal como uma geração aflita com o perigo do retorno de uma guerra, que se esforça para garantir o crescimento e o fortalecimento do novo país.
Um pouco atrás da criança, encontramos um jovem com o rosto inclinado para a direita e o olhar voltado para o horizonte. Sua face aparece mais iluminada que os demais componentes da foto. Esses elementos unidos nos levam a concluir que esse homem se volta para a “luz que nasce num novo dia” (MAUAD, 2018, p. 279-278).
A conclusão que podemos tirar disso é que dias melhores viriam para os coreanos, uma vez tendo sido guiados pela “ocupação” estadunidense na região. A vida difícil que levavam estando no “quartel-general da miséria” — a Ásia — estaria— estaria no passado do país que renascia sob os escombros deixados pelos comunistas (CANÁZIO, 1951, p. 76-90). Em linhas gerais, a imagem é uma representação da vida, da esperança de um futuro melhor e da resistência sul-coreana, em contraponto à ideia de uma Seoul “morta” pelos coreanos do Norte. Fazia-se, portanto, não apenas uma construção visual dos comunistas como produtores de tragédias, como também nos inclina a pensar que os coreanos – incapazes de sustentar os princípios democráticos e morais – falharam como povo e, por isso, chegaram a esse nível de barbárie. A Coreia, encarada por esse ponto de vista, precisaria do Ocidente para mantê-la civilizada.
Portanto, não basta apenas dizer que Canázio e Carneiro eram anticomunistas, mas, para além disso, tambémmantinham um discurso orientalista. Ambas as características são indissociáveis na lógica de seus pensamentos, como veremos também na análise de trechos da reportagem.
2. Trechos da reportagem
Em primeiro lugar, cabe uma pergunta: o que é orientalismo?
O Orientalismo foi uma expressão utilizada por Edward Said para descrever o imaginário construído sobre o Oriente pelos países europeus nos séculos XVIII e XIX. Segundo o autor, esses estereótipos se construíram a partir das experiências europeias no “Oriente Próximo”, isto é, as regiões asiáticas e africanas mais próximas do continente europeu, e com quem consequentemente estiveram em maior contato. Na teoria saidiana, o Ocidente constrói uma noção do Oriente enquanto “irracional, depravado, infantil, ‘diferente’”, enquanto se posiciona como “racional, virtuoso, maduro, ‘normal’” (2007, p. 73). Todavia, Said ressalta que a visão do Ocidente – entendidos como Estados Unidos e Europa – transita de diferentes formas pela afro-ásia, com maior intensidade em algumas regiões geográficas.
Aplicando esse conceito à reportagem, se destacam dois momentos. No primeiro, Canázio faz uma comparação entre valores: “(…) enquanto no Ocidente, de acordo com os nossos princípios, a vida de um homem não tem preço, a existência de um oriental é moldada de uma filosofia bem diversa, que lhe dá um valor bem relativo.” (CANÁZIO, 1951, p. 90, grifo nosso). Em conformidade com os argumentos levantados por Said, fica claro que há um discurso de superioridade racial nesse trecho quando o repórter propõe essa divisão entre os “nossos” valores ocidentais – dignos – e o dos “Outros”.
No segundo trecho, ele utiliza de adjetivos pejorativos, referindo-se não apenas aos coreanos, mas também aos chineses, que também lutaram na guerra ao seu lado: “(…) conclui que dezenas de milhares de coreanos ou chineses não sabem por que lutam e desconhecem o significado da palavra comunismo. Apenas sabem que para ter roupa e comida a tarefa é matar ou ser morto.” (CANÁZIO, 1951, p. 90, grifo nosso).
Percebe-se que os repórteres pouco conheciam a realidade coreana nos anos anteriores. Os coreanos, assim como os chineses, viveram diversos traumas relacionados à presença imperialista japonesa e Ocidental na região. Essas experiências aliadas à proximidade geográfica dos países fizeram com que China e Coreia se engajassem tanto na luta anti-imperialista quanto comunista (VISENTINI et al., 2015). Em outras palavras, os coreanos sabiam sim o porquê lutavam e pelo quê: a liberdade para tomar suas próprias decisões. Dessa forma, ao contrário do que Canázio sugere, é perceptível a presença de uma consciência política na região; ainda que contrária ao Ocidente.
Esse trecho nos oferece um ponto cardeal da perspectiva de Canázio e Carneiro: o seu anticomunismo se alimentava do seu orientalismo. Isso porque, para os repórteres só seria admissível que os coreanos e os chineses lutassem no lado comunista do front, sob a condição de que não fizessem ideia do porquê lutavam e apenas o faziam para satisfazer seu instinto de sobrevivência. Ou seja, só eram comunistas, pois – sendo asiáticos – eram ignorantes e facilmente manipulados por qualquer um.
3. E o Brasil nesse contexto?
O conflito segue sem desfecho e as hostilidades militares continuam, o risco de guerra segue iminente e ainda preocupa a comunidade internacional e, em especial, o Brasil, como foi notado na pesquisa da KOFICE. Esse receio brasileiro não é à toa. A publicação das fotorreportagens da guerra em O Cruzeiro – um dos veículos de informação de maior influência nacional – contribuiu para a construção do discurso anticomunista e orientalista brasileiro, isso fica evidente na reportagem Seoul – Terra Morta (MENDES, 2011).
Se somarmos esse tensionamento ao contexto político do país, os motivos para defender essa construção ideológica ficam ainda mais evidentes. Em 1951, o Brasil já havia passado pela Segunda Guerra Mundial, pelo fim da Ditadura Vargas (1937 – 1945) e o começo do segundo governo de Getúlio Vargas (1951 – 1954). Isso tudo junto à corrida pelo desenvolvimento nuclear, fez com que a preocupação de uma “nova guerra mundial”, ainda mais destrutiva que a anterior, estivesse à espreita. Dessa forma, apesar das tentativas estadunidenses de negociação da entrada brasileira no conflito coreano, persistia uma divisão de opiniões entre as Forças Armadas e a sociedade civil. Por isso, “a contribuição brasileira, naquela conjuntura, ficou, afinal, no fornecimento de minerais estratégicos, mesmo porque o Brasil não estava preparado econômica e militarmente para um conflito” (BUENO, CERVO, p. 302, 2011). Além disso, a política externa brasileira estava voltada para a defesa da América Latina e o desenvolvimento interno.
Sendo assim, mesmo que o Brasil não tenha participado efetivamente da Guerra da Coreia, foi produzido, em alguma instância, um imaginário. No país, as ideias anticomunistas já circulavam desde a década de 1920, os setores mais influentes da imprensa burguesa se veiculavam cada vez mais aos valores estadunidenses e, por isso:
temas clássicos do repertório anticomunista foram recuperados, como as denúncias acerca dos sofrimentos no mundo comunista, a associação do comunismo à imagem do mal (demônio, doença, violência) e a práticas imorais, bem como a concepção de que se trataria de proposta estrangeira, fenômeno importado. (MOTTA, 2000, p. 301).
Essa representação é notada nos textos de Luís Canázio e nas fotografias de Luciano Carneiro.
Após a análise dessa reportagem, conclui-se que, quando Canázio diz que a Guerra da Coreia carregava um significado para o “mundo Ocidental” (1951, p. 68) era de que a ideologia comunista só trazia miséria, destruição e violação. Dessa forma, Canázio propõe que quanto mais próximo aos valores ocidentais, mais distante estariam da barbárie comunista. Assim como o Ocidente se construiu sendo a outra face do Oriente, o socialismo se transformou na outra face do capitalismo-liberal.
A fotorreportagem Seoul – Terra Morta (1951) combinou elementos visuais e textuais para chocar o brasileiro, congregando o discurso orientalista ao anticomunista. A reportagem de Canázio e Carneiro chegou às bancas de jornais brasileiras introduzindo um imaginário de uma Seoul “morta, parada, silenciosa” (CANAZIO, 1951, p. 70) pelo que eles entendiam sobre o comunismo e de uma pretensa ignorância oriental.
APRESENTAÇÃO
¹Jayanne Balbino Soares
Graduanda em Relações Internacionais (UFF), pesquisadora no Boletim Geocorrente (NAC/EGN) e pesquisadora associada à Curadoria dos Estudos Coreanos CEASIA-UFPE.
²Maria Luiza Schaffer Isnard
Graduanda em História (UFF), bolsista de Iniciação Científica na Fundação Biblioteca Nacional e pesquisadora associada à Curadoria dos Estudos Coreanos CEASIA-UFPE.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARNEIRO, Luciano; CANÁZIO, Luis. Seoul – Terra morta. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 5 maio 1951. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/003581/75673>. Acesso em: 24 abr. 2023.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
KOFICE. Global Hallyu Trends: Handbook on the analysis of major issues in Hallyu and regional trends throughout 2021. Korea Foundation for International Culture Exchange, Coreia do Sul, 2021.
IMS — Instituto Moreira Salles. Luciano Carneiro. Rio de Janeiro, s.d. Disponível em: <https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-luciano-carneiro/>. Acesso em: 30 abr. 2023.
MAUAD, Ana Maria. Imagens em fuga: considerações sobre espaço público visual no tempo presente. Florianópolis, Tempo e Argumento, v. 10, n. 23, jan./mar. 2018.
MENDES, Lilian Marta Grisolio et al. American dream e o pesadelo vermelho: americanização e anticomunismo nas páginas de O Cruzeiro 1947-1950. 2011.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). 2000. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. Acesso em: 09 jun. 2023.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das Letras, 2007.
SOTANA, Edvaldo Correia. Do entretenimento aos assuntos internacionais: a paz mundial nas páginas da revista O Cruzeiro (1945-1953). Revista Eletrônica História em Reflexão, v. 11, n. 22, p. 15-31, 2017.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz; MELCHIONNA, Helena Hoppen. A Revolução Coreana: o desconhecido socialismo Zuche. SciELO-Editora UNESP, 2018.
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