Por Vitória Ferreira Doretto
vitoriaferreirad23@gmail.com
“Eu tenho certeza de que você sabe que o primeiro volume do Jikji apareceu…”, começa a contar um dos personagens principais do K-drama Stealer: The Treasure Keeper (tvN, 2023), quase no meio de seu primeiro episódio. O artefato cultural supostamente encontrado, Jikji, abreviação para “Jikjisimcheyojeol” (em coreano, 직지심체요절), é um compêndio, originalmente com dois volumes, de ensinamentos de grandes monges budistas da Dinastia Goryeo (918-1392), escrito pelo monge budista Baegun Gyeonghan em 1372 e impresso em tipos móveis por seus alunos Seok-chan e Daijam em 1377 (KIM, 2023; NEWMAN, 2016; 2019; OPEN CULTURE, 2019). Jikji é um dos primeiros artefatos culturais a aparecer no drama porque, ainda que, contrariando o que foi dito no K-drama, apenas o segundo volume seja conhecido, é um dos grandes tesouros culturais da Coreia e da história da impressão mundial, apesar de não ser tão reconhecido neste recorte — mas já voltaremos a isto.
Dirigido por Choi Joon Bae e Min Jung Ah, com roteiro de Shin Kyung Il, Stealer: The Treasure Keeper conta a história de um ladrão de artefatos culturais chamado Skunk, cuja missão é recuperar o patrimônio cultural coreano que foi roubado e escondido em coleções particulares (MYDRAMALIST, 2023). Seus personagens principais são funcionários públicos que trabalham para reaver objetos da herança cultural coreana que sobreviveram aos mais diversos momentos históricos, como a colonização japonesa (1910-1945), a Guerra da Coreia (1950-1953) e a industrialização (1960-1990). E ainda que esta pareça uma história bastante particular, há um eco de identificação com diversos outros países que tiveram seus objetos culturais saqueados, vendidos, doados e não devolvidos.
E este é um dos aspectos mais interessantes do funcionamento da indústria do entretenimento sul-coreano: a produção de programas que interligam as tramas a questões culturais e sociais características do país e da região, que espelham um sentimento coletivo cultural do Leste Asiático, e questões ocidentais, refletindo a influência capitalista do contexto globalizado (MAZUR, 2021). No caso da trama com artefatos culturais, mais do que um sentimento coletivo cultural asiático, cria-se um sentimento compartilhado por todas as culturas que perderam sua memória.
Mas retornemos ao que nos interessa aqui.
Impresso em 1377 no Templo Heungdeok em Cheongju, 78 anos antes da Bíblia de Gutenberg — também impressa com tipos móveis de metal na Europa em 1455 —, Jikji foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2001 como o livro mais antigo a ser impresso em tipos móveis de metal no mundo e incluído no Programa Registro da Memória do Mundo (KIM, 2023; OPEN CULTURE, 2019).
Com uma trajetória digna de caça ao tesouro, o segundo volume do Jikji foi levado da Coreia para a França. Apresentado ao público pela primeira vez em 1900, o livro fazia parte da coleção pessoal do cônsul francês Victor de Plancy, que adquiriu o compêndio enquanto servia na Coreia. Foi vendido ao colecionador de antiguidades Henri Véver em 1911 e pouco mais de quarenta anos depois, conforme seu testamento, foi doado à Biblioteca Nacional da França em 1952. E finalmente em 1972, o historiador Park Byeong-seon, que trabalhou na Biblioteca Nacional francesa (que, apesar dos pedidos do governo coreano, não devolveu o compêndio), provou que o livro é mais antigo que a Bíblia impressa por Gutenberg (KIM, 2023; OPEN CULTURE, 2019).
Obviamente há toda uma história da impressão independente, anterior e paralela à história do livro europeia, marcada pela revolução de Gutenberg e divulgada extensamente por todo o mundo ocidental (e ocidentalizado). O longo processo que culminou nas impressões em massa de livros tem um capítulo importante nos países asiáticos, que não só determinou a história mundial a partir da preservação de textos budistas, dinásticos chineses e islâmicos (OPEN CULTURE, 2019), mas que foi essencial para a disseminação e desenvolvimento da cultura escrita no Oriente. Newman (2019, s.p., tradução literal) afirma que “o tipo móvel foi uma invenção chinesa do século XXI refinada na Coreia em 1230, antes de encontrar condições na Europa que permitiriam seu florescimento”. Desta forma, o volume preservado do Jikji é importante não só por ser um compêndio religioso antigo, mas por ser a materialização de uma técnica que revolucionou a cultura mundial. Com ele podemos encontrar vestígios preciosos da cultura e da técnica.
Jikji não é reconhecido como o primeiro impresso com tipos móveis, apenas como o sobrevivente mais antigo, mas se ele é mais antigo que a Bíblia de Gutenberg… bem. Cabe aos pesquisadores do livro recuperar este trecho do percurso da história da impressão, que é rico e importante não só para a história coreana, mas para a história do livro como um todo.
Lembrando a trama dos primeiros episódios do drama, quão incrível seria encontrar o primeiro volume do compêndio? Por enquanto, sortudos são os que podem [finalmente] ver ao vivo e em cores o segundo volume na Biblioteca Nacional da França, em Paris, até 16 de julho, quando se encerra a exposição sobre a história da tecnologia da impressão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INCUNABULA. Printed in Korea in 1377, 78 years before Gutenberg… [sequência de tweets]. Twitter, 2022. Disponível em: https://twitter.com/incunabula/status/1567033759899213825. Acesso em: 28 abr. 2023.
JIKJI, the extant and oldest movable metal type printed book. Disponível em: http://korea.prkorea.com/wordpress. Acesso em: 28 abr. 2023.
KIM, Hae-yeon. World’s oldest movable metal print book ‘Jikji’ to be shown in Paris. The Korea Herald, 2023. Disponível em: www.koreaherald.com/view.php ud=20230411000627. Acesso em: 28 abr. 2023.
MAZUR, Daniela. A Indústria Televisiva Sul-Coreana no Contexto Global. Ação Midiática – Estudos em Comunicação Sociedade e Cultura, n. 22, p. 172- 191, 2021. DOI:10.5380/2238-0701.2021n22.09
MEMORY OF THE WORLD PROGRAM. Jikji Memory of the World Prize. UNESCO, 2004. Disponível em: www.unesco.org/en/prizes/jikji. Acesso em: 28 abr. 2023.
MYDRAMALIST. Stealer: The Treasure Keeper (2023). Disponível em: https://mydramalist.com/726479-karma-seven-joseon-notices. Acesso em: 28 abr. 2023.
NEWMAN, M. Sophia. The Buddhist History of Moveable Type. Tricycle, 2016. Disponível em: https://tricycle.org/magazine/buddhist-history-moveable-type. Acesso em: 28 abr. 2023.
NEWMAN, M. Sophia. So, Gutenberg Didn’t Actually Invent Printing As We Know It. Lit Hub, 2019. Disponível em: https://lithub.com/so-gutenberg-didntactually invent-the-printing-press/. Acesso em: 28 abr. 2023.
OPEN Culture. The Oldest Book Printed with Movable Type is Not The Gutenberg Bible: Jikji, a Collection of Korean Buddhist Teachings, Predated It By 78 Years and It’s Now Digitized Online. 2019. Disponível em: www.openculture.com/2019/07/jikji.html. Acesso em: 28 abr. 2023.
SOBRE A AUTORA
Vitória Ferreira Doretto
Doutoranda, Mestra em Estudos de Literatura (UFSCar), professora de Português Língua Estrangeira (IL/UFSCar), pesquisadora no COMUNICA (UFSCar/CEFET MG/CNPq), pesquisadora associada ao CEASIA-UFPE e integrante do HWAITING.
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