Entrevistas

ELIC entrevista Felipe Medeiros, tradutor de “O inferno das garotas”, do autor japonês Yumeno Kyūsaku – Parte 1

Felipe Medeiros lê e comenta breve trecho do livro “O inferno das garotas”

Perguntas feitas por: Agatha Garibe (contato@agathagaribe.com.br) e Amanda de Morais (amndmorais@gmail.com)

Produção, organização e revisão do texto: Amanda Serafim (amandakss25@gmail.com), Maria Gabriela Pedrosa (mariagpedrosa@gmail.com) e Rayane Sátiro (satirorayane9@gmail.com).

Curadoras: Angélica Alencar e Paula Michima.

Arte e edição de áudio: Assucena Maria (assucena.ms@hotmail.com).

A presente entrevista celebra o fim do primeiro semestre do grupo ELIC (Estudos de Linguagens, Identidades e Culturas), um dos subgrupos que está sob o guarda-chuva da curadoria de Assuntos do Japão. O grupo surgiu no início de 2021, a partir de vários interesses, que a princípio, não pareciam tão afins, mas, que ao fim, tornou-se o que é hoje: um grupo de estudos, bem como de produção acadêmica, promovendo quinzenalmente encontros no ambiente virtual a fim de discutir textos teóricos sobre diversos temas inseridos na cultura japonesa, compreendendo questões caras aos conceitos de identidade e de cultura.

Algumas questões, no entanto, sempre rondaram o interesse do grupo, tais como: de que maneira a identidade japonesa é retratada pela própria sociedade japonesa em contraponto às suas representações nas culturas ocidentais?; como a questão de gênero é retratada nas produções culturais japonesas?

Perante a essas interrogações, que são apenas algumas, pensamos nossa atividade semestral voltada a dois temas que muito nos são caros: tradução e gênero. Recebendo uma indicação da curadora Angélica Alencar, Felipe Medeiros e O inferno das garotas delinearam-se como concatenadores dessas duas temáticas e o projeto que se mostrou mais rico para nós apresentarmos ao público foi por meio de uma entrevista, que será dividida em duas partes, e divulgada aqui no site.  

Felipe Medeiros é formado em Letras-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também obteve título de mestre e atualmente cursa o doutorado em Ciência da Literatura. Desde a graduação, mantém grande interesse em idiomas e atua como tradutor de inglês, alemão e japonês. Além dos trabalhos de tradução pela Laboralivros, é autor de dois livros de ficção: Sven (2013), lançado pela editora musAbsurda, e Hebefrenia (2020), pela Urso.

A obra O Inferno das Garotas (1936), de Yumeno Kyūsaku, ainda inédita no Brasil, traz uma escrita sensível e sagaz sobre os papéis de mulheres e meninas na sociedade japonesa do início do século XX. O autor lhes dá voz ao passo que nos mostra o porquê de esse feminino estar atrelado ao tema da morte, ou ao “inferno”. Nessa primeira parte da entrevista, intermediada por Agatha Garibe, iremos observar, em ricos detalhes, o interesse de Felipe Medeiros pelo ato de traduzir, bem como pela obra já citada, e o autor.

 

Parte 1

AGATHA GARIBE: Quem é Felipe Medeiros e como se interessou pela área de tradução?

FELIPE MEDEIROS: Antes de tudo, quero agradecer muito pela oportunidade de estar aqui conversando com pessoas tão qualificadas sobre essa tradução. Bem, eu nasci em São Paulo e, aos 10 anos, vim para a serra carioca, onde moro até hoje. Em 2011 entrei no curso de Letras-Literaturas na UFRJ, onde desenvolvi gosto por línguas estrangeiras, a começar pelo latim e o grego, matérias obrigatórias. Depois, fui estudar também alemão, russo e japonês. Este último, cursei e me formei pelo Kumon. Meu interesse pela tradução surgiu concomitante ao meu desejo de ser escritor (tenho dois livros publicados). Não vejo como tarefas distintas, pois, no ato de tradução, tal como o entendo, é preciso haver muito de criação e pesquisa, dois atributos fundamentais, também, para ser um ficcionista (de novo, tal como o entendo). Hoje em dia, estou no doutorado em letras na UFRJ, trabalhando com um autor dos EUA, Thomas Pynchon. Antes disso, tinha trabalhado com O idiota, de Dostoiévski. Ou seja, sempre estive em contato com idiomas estrangeiros e acho que isso me impulsionou um tanto para a carreira de tradutor, que passei a admirar e vislumbrar ainda durante a graduação. Afinal, a ideia de entrar em contato com outra língua, que poderíamos dizer ser o cerne mesmo de uma cultura, sempre me pareceu algo fascinante e lindo demais. Poder comunicar e distribuir esse amor através de minha língua nativa é algo que considero um dever meu, tanto na tradução quanto na ficção.

AG: Qual foi o seu maior desafio na tradução do livro?

FM: Acho que com essa já responderei em parte também a próxima pergunta, porque a maior dificuldade foi não ter com quem dialogar. Foi um corpo a corpo muito difícil e desgastante com o texto japonês, não só por ser um livro lançado há quase um século, num momento muito complexo do Japão, com a ascensão do ultranacionalismo e com a guerra quase a ponto de estourar, como também por Kyūsaku ser extremamente peculiar, ao mesmo tempo mantendo uma compreensão fluida do japonês, mas minando essa mesma fluidez com momentos, digamos, de suspensão poética muito próprios e sutis. Minha sorte foi poder contar com minha professora de japonês do Kumon, Shoko Kishi, que muito me ajudou quando o texto parecia incompreensível.

Figura 1: O livro O inferno das garotas, traduzido por Felipe Medeiros (Divulgação).

AG: Em 2014, o livro O inferno das garotas foi traduzido para o espanhol. Você obteve inspiração na versão espanhola ou se entregou totalmente à obra original?

FM: Então, há, pelo que eu e a editora Lua Bueno Cyríaco conseguimos localizar, apenas oito traduções no Ocidente das obras de Yumeno Kyūsaku. Seis delas são de contos e novelas traduzidos para o inglês, que estão esparsos em revistas ou em e-book na Amazon, e a muitos dos quais não consegui acesso. As outras duas são a tradução espanhola de Shōjo jigoku, que ficou El infierno de las chicas, lançado em 2014, e a tradução francesa do romance mais famoso de Kyūsaku, o Dogura Magura, traduzido para o francês como Dogra Magra, em 2003, por Phillippe Picquer. Infelizmente, não conseguimos acesso ao livro, porque ficaria extremamente custoso comprá-lo (mais de 20 dólares do livro e ainda mais 20 do frete!). Como a editora é independente e não tinha como arcar com isso, resolvi embarcar sozinho na tradução. É sempre um risco, porque, através do diálogo com outra tradução, pode-se encontrar muitas soluções interessantes. Por exemplo, Paulo César de Souza, tradutor de Nietzsche e Freud, está sempre bem acompanhado de mais de uma edição crítica e diversas traduções, cada uma das quais com soluções próprias que ele, às vezes, coloca em suas notas. Mas, a despeito disso, espero ter feito um bom trabalho.

AG: Como você conheceu as obras do autor Yumeno Kyūsaku e por que essa foi a obra escolhida para traduzir para o português?

FM: Eu conheci através da Lua Bueno, uma das editoras chefe da Laboralivros. De início, pensávamos em traduzir uma coletânea de contos japoneses de temática gótica (tal como o entendemos no Ocidente), desde o século XVIII até hoje em dia. Mas ela me deu outra opção, o Kyūsaku, de quem ela tinha ouvido falar em suas pesquisas e de quem nada havia traduzido ainda no contexto lusófono. Comparando os dois textos, a paixão foi instantânea, não sei por quê, pelo estilo de Kyūsaku. Como Dogura Magura é um livro longo, decidimos por Shōjo jigoku, que é menor e tem a peculiaridade de ter sido lançado pouco antes de o autor morrer de hemorragia cerebral repentina, enquanto conversava na sala de sua casa com um amigo.

Figura 2: Editora Laboralivros (Divulgação).

AG: O autor foi um monge budista. Você acredita que a filosofia budista está implícita na obra?

FM: Yumeno Kyūsaku foi monge budista por cerca de dois anos na década de 1920. Creio que foi uma maneira que ele encontrou de fugir do trabalho do campo, a que o pai o obrigara antes mesmo de terminar a faculdade de letras de Keiō (que aparece no livro, aliás). Eu acredito que a vida monástica deu a ele algo que faltou em muitos de seus contemporâneos, tanto por, como dito, estarem num tempo caótico, quanto por não saberem mesmo como agir nesse tempo. É, sem dúvida, um sentimento de desamparo muito compartilhado por outros pensadores e escritores europeus, como Walter Benjamin, Erich Auerbach e Franz Kafka. Em meio a isso, é muito fácil, talvez, se render totalmente ao absurdo de uma maneira cada vez mais intensa.

O caminho escolhido por Kyūsaku, eu acredito, foi outro, embora seja uma das tônicas de sua escrita o flerte com o absurdo, especialmente na forma do nansensu (não/sem sentido), sobre o qual ele tem um texto de 1929, lançado na revista Ryōki (Bizarro, ou literalmente Caça ao estranho). É um caminho sutilmente diferente, porque não me parece ter aquele fetiche pelo excêntrico em si, muito característico da literatura juvenil masculina da época. Em vez de descrever situações excêntricas, Kyūsaku insere o nansensu em meio a uma literatura extremamente engajada com questões sociais, como a doença e os hospitais psiquiátricos, a situação de pessoas do interior que vão para a capital. Assim, o sem sentido de suas narrativas é apenas um elemento dentro de um todo concernente, a meu ver, à crescente compaixão que ele tinha para com todos os seres e que foi mais cultivada nos anos em que foi monge. Não à toa, esse mesmo autor também escreveu contos infantis (alguns dos quais foram adicionados ao fim do livro). Ele parecia querer atingir todas as idades com essa e outras mensagens, convencê-las a seguirem outro caminho que não a guerra, a segregação, o ódio.

Figura 3: Fotos do autor japonês Yumeno Kyūsaku.

AG: O que você aprendeu ao realizar a tradução do livro e qual parte da história mais te chamou atenção?

FM: Aprendi algo surpreendente: a história (o passado, o presente, o futuro) nunca é tão simples quanto talvez quiséssemos que ela fosse. É muito fácil falar simplesmente que as primeiras décadas do século XX japonês foram protagonizadas por homens que objetificavam as mulheres, obrigando-as a uma vida de reclusão doméstica, enquanto os homens serviam o Estado. Yumeno Kyūsaku é uma voz fora da curva e, quem sabe, por isso foi apagado, invisibilizado pelas grandes editoras, que não quiseram, ou não correram atrás, ou não aceitaram, uma voz que não comungasse com as ideias preconcebidas que tinham de um Japão excêntrico e ainda super atado às tradições milenares. Os leitores encontrarão nesse livro, cujo título pode ser um pouco enganador, não uma obra lasciva que apresenta mulheres em situações humilhantes, nem descrições que sigam nesse sentido, mas, sim, um livro que dá integralmente voz a essas personagens também apagadas.

São três contos em forma de cartas. O primeiro é escrito por um homem; o segundo, por uma mulher que trabalha de condutora de ônibus (parecido com os nossos cobradores); e o terceiro, por uma menina que está prestes a se formar no ensino médio. Em todos eles as mulheres são protagonistas, mas apenas no primeiro conto a voz que ouvimos não é delas diretamente, mas sim de um homem, e mais, um médico. Então, a rigor, nunca temos acesso à voz da mulher, porque a carta toda se baseia nas memórias de um homem. E ainda assim, existem brechas, momentos em que ele próprio vê suas certezas abaladas, vê-se diante de situações em que ele não consegue dar sentido. É esse, talvez, o maior sentido do nansensu em Kyūsaku: a própria falta de sentido que se embrenha em nosso cotidiano de diversas maneiras. Quando ela é transposta à literatura, parece algo excepcional, mas, às vezes, basta darmos atenção às pequenas e grandes coisas que nos surgem diariamente, para entendermos que não está tão distante assim.

A minha parte preferida do livro é quando a protagonista do terceiro conto se vê diante do infinito e do nada. Foi em trechos assim, que abundam no livro, que eu percebi, também, a semelhança com muitas autorias femininas, a exemplo de Clarice Lispector, que nem suspeitavam da proximidade que tinham com um escritor japonês do início do século XX.

Parte 2 da entrevista aqui!

Contatos de Felipe Medeiros:

E-mail: felipemp93@hotmail.com

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Instagram: @sometwothree

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