Entrevistas

ELIC entrevista Felipe Medeiros, tradutor de “O inferno das garotas”, do autor japonês Yumeno Kyūsaku – Parte 2

Perguntas feitas por: Agatha Garibe (contato@agathagaribe.com.br) e Amanda de Morais (amndmorais@gmail.com)

Produção, organização e revisão do texto: Amanda Serafim (amandakss25@gmail.com), Maria Gabriela Pedrosa (mariagpedrosa@gmail.com) e Rayane Sátiro (satirorayane9@gmail.com).

Curadoras: Angélica Alencar e Paula Michima.

Arte e edição de áudio: Assucena Maria (assucena.ms@hotmail.com).

Dando continuidade à entrevista de Felipe Medeiros (veja aqui a primeira parte) , tradutor do livro O inferno das garotas (1936), de Yumeno Kyūsaku, para o ELIC, grupo pertencente à curadoria de Assuntos do Japão, vamos à segunda parte, essa mais centrada na questão de gênero, temática proeminente nos contos.

No entanto, antes de adentrar novamente nas palavras de Felipe Medeiros, dessa vez intermediadas de forma atenta e precisa por Amanda de Morais, o tradutor nos concedeu um áudio com uma declamação de um trecho e uma pequena, mas singular e delicada, apreciação. 

Felipe Medeiros lê e comenta breve trecho do livro “O inferno das garotas”

Parte 2

AMANDA DE MORAIS: Como você acha que a realidade de Yumeno Kyūsaku o influenciou na retratação das mulheres em seus contos?

FELIPE MEDEIROS: Essa pergunta vai em direção a algumas das respostas que já dei. Mas acho que é preciso, de novo, certa cautela quando falamos de “realidade”. O que queremos dizer com isso? A princípio, parece que temos de falar dos principais acontecimentos da era Taishō (1912-1926) e Shōwa (1926-1989), durante as quais Kyūsaku viveu, para só então falar de como ele “retratou” essas personagens. Mas talvez o caminho inverso seja mais rico, no sentido de que histórias do Japão já abundam em diversos idiomas, mas as obras de Kyūsaku, não. Quero dizer com isso que a realidade não me parece nunca algo dado, mas, sim, construído a cada vez, seja pelas forças políticas e econômicas que dominam (ou tentam dominar) uma nação e seus cidadãos, seja pelas forças e contra forças da arte, que recriam essa mesma ideia de realidade em outros parâmetros, coordenadas, paixões. Para mim, o sentido da história ficcional e factual nunca está dado de antemão.

Então, a singularidade desse escritor talvez esteja exatamente naquilo que ele conseguiu evitar, revisar, desconstruir, ressignificar. Por exemplo, numa era de ultranacionalismo e militarização crescente, por que alguém não escreveria sobre isso? Por que falar de mulheres? Por que dar voz a algumas dessas mulheres e meninas? Que inferno é esse? O próprio título já oferece um desafio: o inferno pertence às garotas ou é o inverso? Trata-se de um livro em que se conta como mulheres dominam um espaço infernal ou de como elas são dominadas e massacradas no inferno da sociedade japonesa, das tradições, sempre exaltadas por homens falsos e ambíguos.

Mais do que tentar responder, jogo de volta essas perguntas para os leitores e leitoras que vão encarar esse livro de Kyūsaku, na esperança de que não aceitemos mais soluções fáceis e dadas.

AM: A retratação da morte é tema persistente no livro. Você acha que o autor trouxe alguma nova perspectiva acerca de tal elemento na construção de sua narrativa?

FM: A questão da morte me parece estar bastante ligada ao inferno mesmo. Na primeira página do primeiro conto, o médico menciona o inferno de Avici (muken jigoku), que é o último dos infernos de certas tradições budistas, aquele destinado ao sofrimento incessante dos que assassinaram os pais, criaram cisões em seitas budistas e fizeram um Buda sangrar. E o médico fala desse inferno referindo-se a uma mulher que não fez nada disso. Então, o que ela fez? A leitura do livro me faz pensar numa possível resposta: nasceu mulher. E mais, uma mulher inconformada com a morosidade da vida, que buscou transcender seus limites. Todas as mulheres e meninas desse livro me parecem, de alguma forma, estar nesse movimento.

Portanto, a grande (imensa!) novidade que eu vejo nesse livro, especialmente na questão da morte, é que, de um lado, não existe heroicização da morte, nem mesmo um clímax a se chegar, porque todas as mortes estão anunciadas logo nas primeiras páginas. Por outro lado, se a questão não é o momento climático da morte, me parece que o que está em jogo é o meio do caminho mesmo. O processo social, afetivo e psicológico que fez com que essas mulheres e meninas não vissem outra escolha além da morte, como fuga de uma opressão que lhes parecia inescapável. Essa visão nada masculinizada, mas compassiva e aberta, me parece uma das grandes surpresas desse livro. Cheguei esperando um texto brutal, e achei sensibilidade.

AM: Como você conseguiu enxergar a perspectiva de gênero por meio da narração do autor? Foi possível perceber marcadores de gênero da língua como influenciadores da narrativa?

FM: A narrativa nesse livro é algo necessariamente complexo pelo simples fato de serem cartas. Assim, o tempo todo, sinto que devemos nos perguntar: quem está falando mesmo? Quando, no primeiro conto, o médico narra por mais de cinquenta páginas sua história com a enfermeira, é muito fácil perder de vista que ele é o autor de todas aquelas palavras, mesmo as da enfermeira, de sua esposa e da “tia” da enfermeira. Mas tudo isso é feito com sutileza deslumbrante, pois Kyūsaku nunca quebra a “quarta parede” como que para nos avisar: “Leitor, isso é uma carta. Não se esqueça, viu?”. Isso fica a cargo do próprio leitor, é seu ônus. Tal movimento é complexificado nos outros contos, especialmente no último, que começa com uma série de artigos de jornais e desemboca numa longa carta de uma colegial, contando a história de sua vida. No processo de tradução, foi preciso sempre estar atento a quem estava falando, de modo a transmitir ao leitor de língua portuguesa as ambiguidades recorrentes no texto. Pois é muito comum, no japonês, a omissão do sujeito, porque há outros marcadores sintáticos e morfológicos que permitem saber quem é quem (se é homem, mulher, menino, menina, alguém de hierarquia maior ou menor, mais velho ou não, e assim por diante). Quebrar essa ambiguidade seria, para mim, indesejável, porque faz parte, ademais, da forma com que um outro povo, uma outra cultura, enxerga e faz sentido do mundo. Sinto que minha tarefa foi servir de ponte para o leitor começar a chegar a esse outro espaço. E isso tem tudo a ver com a questão de entender quem falava nessa narrativa tão marcada pelo gênero (como o é a sociedade japonesa há séculos, embora de diferentes maneiras).

AM: O japonês como língua não “generificada”, em comparação a idiomas como português e alemão, trouxe algum desafio para o trabalho de tradução no que se refere à produção de sentido acerca das mulheres que são narradas?

FM: Eu diria exatamente o contrário sobre o idioma japonês! Existem partículas e pronomes que uma mulher ou um homem nunca diriam. Como disse anteriormente, é comuníssimo na literatura japonesa haver páginas e mais páginas de diálogo sem que haja explicitado quem foi que disse. Isto porque, para dar apenas um exemplo, uma frase “nunca” será terminada com um “wa” por um homem. Coloco o nunca entre aspas, porque quem sou eu para dizer que determinada coisa nunca ocorrerá. Lá no período Heian (794-1185), o grande poeta Ki no Tsurayuki escreveu o famoso Tosa nikki (Diário de Tosa) todo em kana, que é o alfabeto katakana de hoje em dia, criado por mulheres para poderem escrever sem usar kanji (escrita chinesa). O gênero do diário já tinha longa tradição na literatura japonesa, mas, entre homens, era de praxe servir a relatórios de serviço e ser escrito em chinês. Ki no Tsurayuki não só lança este diário todo em kana, como o escreve com um pseudônimo de mulher. Portanto, quem sou eu, de novo, para dar sentido último a uma época!

Quanto à tradução especificamente, infelizmente é impossível ser ponte larga o suficiente para passar todos os elementos de um idioma para outro. Quando, por exemplo, no terceiro conto, certa personagem usa o pronome wagahai, eu não pude simplesmente traduzir por “eu”. Depois de Natsume Soseki, com seu livro Wagahai wa neko de aru (Eu sou um gato), nunca mais se usou tal pronome da mesma maneira. Então, eu tive de encontrar uma solução que remetesse a Natsume e, ainda, adicionei uma nota de rodapé.

Vale dizer que não tive pudor em adicionar notas. Meu único cuidado foi em não fechar o sentido de determinadas passagens para o que eu, tradutor, estava entendendo. Apenas as escrevi quando percebi que só quem soubesse japonês teria acesso a tal informação.

AM: Você acha que o autor pretendeu construir ou exibir a imagem de um padrão de feminilidade por meio dos contos? Que tipo de imagético acerca da mulher japonesa você acha que pôde ser entendido através das histórias?

FM: Não sei se ele quis, com essas personagens femininas, construir uma espécie de padrão ou arquétipo de japonesa. Talvez ele tenha querido mostrar algumas das várias mazelas por que passam, mas não construir personagens-tipo, por assim dizer. De início, eu, que fiz meu mestrado em O idiota, de Dostoiévski, no qual há uma das grandes personagens femininas da literatura russa, a Nastácia Fillípovna, imaginei que se trataria de um livro com mulheres fatais. Imaginei que o autor gostaria de mostrá-las vingando-se a todo custo. O que existe, mas não as encerra por completo de maneira alguma, em minha opinião.

Imagino que Kyūsaku estava, como mencionei antes, se posicionando contra certos padrões masculinos de escrita, que também encontramos no Ocidente aos montes. Primeiro, contra uma narrativa completamente racional, que aloca a mulher numa posição estanque por conta de sua fisiologia. Segundo, contra uma narrativa fetichista da mulher, ou seja, que apenas enxerga nela um conjunto de partes que servem para seu próprio prazer ou satisfação. Terceiro, contra uma narrativa que não coloque a mulher numa posição desigual à do homem nem à de ninguém. Isto me parece feito, com acuidade, quando Kyūsaku dá, integralmente, voz às mulheres e às meninas que povoam esses contos. Neste sentido, acredito que, se há personagens-tipo, seriam os homens, todos ocupando, de um jeito ou de outro, uma posição social superior à das mulheres. Mas isto é apenas uma hipótese.

Figura 1: Recompensas para quem comprar o livro no projeto do Catarse (Divulgação). Link para acessar o projeto: https://www.catarse.me/shojojigoku.

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