Curadoria Japão, Entrevistas, Japão

ENTREVISTAS | Conversa com a tradutora Karen Kazue Kawana

Entrevista e texto: Pedro Malta Chicaroni

Revisão e texto: Felipe Medeiros

O Grupo de Trabalho de Tradução da Curadoria de Assuntos do Japão da CEÁSIA inicia o ano de 2022 trazendo para o público uma entrevista. Prezou-se por manter a coloquialidade da conversa e por apresentar ao público uma faceta mais humanizada da pessoa e da prática tradutória, repleta de dúvidas e tentativas.

Karen Kazue Kawana é tradutora literária de Japonês-Português, doutora em Filosofia e doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Traduziu textos de autores como Ango Sakaguchi, Akiko Yosano (2020) e Riichi Yokomitsu (2017). Convidamos a tradutora a conversar conosco sobre suas experiências com tradução de literatura japonesa, dando enfoque à coletânea de contos de Motojirô Kajii, O Limão, traduzida por ela e publicada pela editora Bestiário em 2021.

“Por alguma razão, objetos de beleza decadente exerciam grande atração sobre mim nessa época. Por exemplo, apreciava as ruas de quarteirões dilapidados, não as ruas principais que me recebiam com frieza, mas a vielas que revelavam sua intimidade: as roupas sujas penduradas nos varais e o lixo espalhado pelo chão, os interiores dos cômodos imundos que entrevia quando passava diante das casas.” (“O limão”, p. 9)
Motojirō Kajii. Fonte: zatsuneta.com

Grupo de Trabalho: Em primeiro lugar, gostaríamos de pedir para que se apresentasse, Karen, contando-nos sobre sua trajetória com a língua japonesa e a tradução. 
Karen Kawana: Sendo descendente de japoneses, meu contato com a cultura japonesa começou em casa. Meu pai é japonês e veio ao Brasil com 22 anos, em um desses últimos navios que trouxeram imigrantes para trabalharem como colonos. Apesar disso, não iniciei meus estudos da língua até mais tarde. Nunca fiz Nihon Gakkô 1, nem conversava em japonês em casa. Meu pai, às vezes, usava palavras em japonês, mas o que eu aprendi foi por acaso, pescando o significado de algumas coisas que eram faladas ao meu redor. Eu só comecei a estudar japonês quando entrei na faculdade. Fiz graduação em filosofia, pois não sabia muito

bem o que fazer da vida, então escolhi um curso que me permitisse ler, algo de que sempre gostei. Quando entrei na faculdade, podia praticamente cumprir metade dos meus créditos em disciplinas de outras áreas. Acabei usando esses créditos em disciplinas de língua japonesa e assim fiz o curso de japonês básico no Centro de Ensino de Línguas da Unicamp. Além disso, também fiz monitoria durante um ano lá, mas, praticamente, parei de estudar a língua depois que terminei minha graduação.

Quando fui fazer o mestrado em filosofia e, em seguida, também o doutorado na mesma área, passei a estudar francês, língua do autor que eu estudava, Rousseau. Minha pós-graduação foi praticamente concentrada nos pensadores franceses, como Rousseau, Diderot e Voltaire. Foi apenas depois de um tempo, quando não tinha mais tantas atividades acadêmicas, que eu voltei a estudar japonês, fazendo cursos particulares ou estudando por conta própria. Levei muito tempo para ter um nível de leitura satisfatório, que me permitisse de fato ler um texto. Quando isso aconteceu, eu resolvi fazer o mestrado em japonês na USP. Minha dissertação foi sobre Osamu Dazai, com a professora Neide Hissae Nagae como orientadora. Acho que foi a partir daí que eu comecei a traduzir mesmo: traduzindo os contos de Dazai que tinham narradoras protagonistas, que era o tema da minha pesquisa.

Depois disso, eu não parei mais. Eu vi que traduzir era também um jeito de estudar, de adquirir vocabulário, e esse processo de tradução e aprendizado da língua continua até hoje. (Esses contos do Dazai que eu traduzi tiveram seus direitos autorais adquiridos por uma editora, que, infelizmente, não os publicou até hoje.) Depois de um tempo, eu passei a traduzir os contos do Motojirô Kajii, ainda com essa intenção de aprimorar meu japonês, porque a língua japonesa é difícil e acho importante estabelecer uma intimidade com a língua que se estuda por meio da leitura ou da conversação. Esse é um processo ativo, não acontece sozinho. No momento, estou fazendo um doutorado sobre autores japoneses e também tenho seguido o mesmo padrão, tentando sempre me valer do texto em sua língua original, como tenho feito desde o mestrado e o doutorado em filosofia.

GT: Você diria que a tradução faz parte do seu processo de pesquisa? Que ela está ligada ao seu processo de estudar um autor?

K: Para mim, a tradução é parte importante do meu processo de pesquisa. Acho que, fazendo a tradução, eu consigo ver coisas no texto que não enxergaria se não a fizesse. Muitas pessoas falam que você tem que começar a traduzir um autor depois que você já leu tudo dele, depois que você já conhece intimamente o autor por tê-lo estudado. Mas eu gosto de fazer essas duas coisas em conjunto: estudar e traduzir ao mesmo tempo. Acho que são coisas complementares.

GT: Em fevereiro de 2021, você lançou uma tradução da coletânea de contos O Limão de Motojirō Kajii (1901-1932) pela editora Bestiário. Kajii é reconhecido como um dos maiores contistas da tradição moderna japonesa, mas creio que o autor ainda seja, em grande medida, desconhecido do público brasileiro. Sendo assim, gostaria de pedir que, brevemente, nos contasse um pouco sobre a obra de Kajii, da maneira como você a enxerga. Como você descreveria a literatura deste autor? Quais pontos chamam a sua atenção?

K: Acho que, assim como todo mundo que descobre o Kajii, o primeiro texto do autor que eu li foi o conto “O Limão”. Devo ter lido alguma tradução, tenho o costume de ler muita literatura japonesa traduzida para conhecer novos autores. Sou uma leitora um pouco lenta em japonês, costumo procurar o significado de todas as palavras desconhecidas de um texto no dicionário e isso toma muito tempo; então, às vezes, prefiro ler traduções para o inglês ou para o francês. Quando li “O Limão” pela primeira vez, achei o autor interessante e resolvi fazer a tradução desse texto, a partir do original. Depois disso, como vi que o autor não tinha uma obra extensa, majoritariamente contos esparsos, comecei a traduzir um ou outro, até que, ao final, eu havia traduzido quase tudo que ele havia publicado em vida, ou seus principais textos. Já que ele teve uma carreira literária muito curta.

Sobre o fato de ele ser pouco conhecido aqui no Brasil, eu acredito que isso também seja verdade no Japão. Os japoneses com os quais conversei também conheciam poucos textos do autor, praticamente só “O Limão”, que estudam nas escolas mesmo. O Kajii é um autor do qual gosto muito, porque gosto de textos descritivos e ele é um escritor muito visual. Seus textos trazem descrições e imagens muito inusitadas e têm uma relação forte com a pintura também. Ele costuma citar pintores ocidentais, relacionando um quadro com uma paisagem, por exemplo; e como eu também sou muito visual, quando leio, gosto de visualizar aquelas paisagens em minha mente. Acho que ele casou bem com as minhas preferências literárias.

GT: Você diria que o que te levou a se interessar por Motojirō Kajii foi essa questão descritiva e imagética da obra dele? O que te motivou a traduzir a obra dele especificamente?

K: Acho que foi isso mesmo. Uma questão de afinidade, você acaba traduzindo aquilo de que gosta, e pelo menos eu tenho essa liberdade de escolher o que traduzir. Gosto da melancolia e do estilo do Kajii, e da sua história de vida também. Ele ficou doente muito jovem, passou metade da vida com tuberculose e eu acho que isso tem muita influência na forma como ele enxerga as coisas, isso tinge muito os seus textos. Principalmente em sua relação com a morte, que se reflete em um jogo de claro e escuro em seus textos. Ele usa muito esse recurso, contrapõe o sol e a alegria à escuridão, descreve muito a noite ou os momentos em que vê o sol se pôr, o que, ao meu ver, ele associa com seu próprio caso: com a certeza de que vai morrer um dia.

“Fui atingido por uma sensação de solidão infinita. O concerto – a grande cidade na qual ele ocorria – o mundo. A curta peça musical chegou ao fim. Um som parecido com um vento frio e seco se prolongou por algum tempo. Depois disso, a música voltou a ressoar em meio ao silêncio. Nada mais fazia sentido. Como explicar aqueles períodos de ruidosa comoção e total silêncio senão dizer que eram um sonho?” (“Delírios instrumentais”, p. 137) 
Motojirō Kajii. Fonte: ameblo.jp

GT: Ouvindo você falar sobre os pontos que te atraem na obra do Kajii, acabei lembrando, em específico, de um dos contos da coletânea, “O Pergaminho Ilustrado da Obscuridade”. Poderia nos falar um pouco sobre o que pensa dele?

K: Esse é um dos contos de que gosto bastante. Nele, Kajii descreve o percurso que fazia quando voltava de uma pousada onde ele se encontrava com Kawabata. Ele vai, basicamente, descrevendo as transições entre escuridão e claridade que percebia enquanto caminhava e como isso o afetava: o alívio que sentia quando via uma luz lá na frente, a sensação de temor e melancolia que experimentava quando passava por trechos mais escuros e via uma pessoa à sua frente desaparecendo na escuridão (como ele dizia que também desapareceria um dia). Acho esse um conto bem elaborado, muito bonito.

GT: Agora, falando especificamente da tradução, quais foram os desafios de trazer Kajii para o público brasileiro? Como você lidou com as características específicas da língua japonesa, por exemplo, a diferença na ordenação das frases, ao realizar a tradução?

K: Acho que os desafios para traduzir os contos de Kajii foram os mesmos que encontraria traduzindo outros autores japoneses. Não me lembro de nenhum desafio em particular. Dentre minhas (poucas) experiências com tradução, o Kajii não foi um autor que tenha achado mais difícil de traduzir do que os demais. Se eu tivesse que mencionar algo, diria que a grande quantidade de nomes de plantas que tive de pesquisar talvez tenha sido a maior dificuldade. Sobre as particularidades da língua japonesa, pessoalmente, tento favorecer a domesticação ao invés da estrangeirização quando traduzo. Gosto que o texto fique um pouco mais natural, que ele não soe tão estranho para o leitor. Mas não sei se sou bem sucedida nisso, porque isso também depende de muitas questões idiossincráticas do tradutor e do leitor. O que pode soar “natural” para mim pode ser estranho para quem lê. Além disso, é fácil deixar certas coisas passarem despercebidas enquanto traduzimos. A ordem das frases, por exemplo. Às vezes, é só quando releio minha tradução que consigo ver que seria melhor escrever o texto de uma forma diferente, mudando a ordem dos elementos. Quando possível, tento não deixar muitas palavras estrangeiras no texto, até para não ter de abrir tantas notas. Por outro lado, sei que dou muitas explicações, então é difícil encontrar um equilíbrio. Enfim, gosto da ideia de ler um texto traduzido como se ele tivesse sido escrito na língua alvo, mas é um ideal, não sei se consigo obter isso na prática.

GT: Apesar do Kajii ser um autor famoso pelo seu estilo marcante, parece-me que seus contos também são muito variados entre si. Como você sente essa multiplicidade da obra do autor enquanto leitora e tradutora?

K: Eu faço uma divisão da obra do autor entre os textos de que gosto mais e aqueles de que gosto menos. “O Limão” é um dos de que gosto muito. É um dos textos que trazem uma carga imagética e sensorial muito grande. Além dele, também gosto de alguns dos seus textos que são quase como poemas em prosa, como “Sob as cerejeiras”. Acho o Kajii mais interessante quando ele está falando mais de si mesmo, quando se confunde com o protagonista de seus contos. Seus textos se tornam menos interessantes para mim quando são escritos em terceira pessoa, como em “Depois da Nevasca”, ou em “O Paciente Despreocupado”, que acho que é um dos contos que mais destoa do estilo do resto da coletânea, pois, nele, Kajii começa a associar a sua condição pessoal de enfermo à situação da população pobre que sofre de tuberculose, revelando uma inclinação para a literatura proletária. É um bom conto, claro, mas não um dos meus preferidos.
GT: Por fim, queria te agradecer, Karen, por ter aceitado participar desta conversa e gostaria que você nos contasse um pouco sobre seus próximos projetos de tradução e pesquisa.

K: Ano passado, organizei e traduzi, junto com outros tradutores do núcleo de tradução do Grupo de Pesquisa “Pensamento Japonês: Princípios e Desdobramentos” uma coletânea de textos da escritora Yuriko Miyamoto e espero que ela seja publicada futuramente. Ela é uma autora desconhecida por aqui e acho que enriqueceria nosso repertório de literatura japonesa de autoria feminina em tradução. Este ano, faço parte de outro núcleo de tradução que vai começar a traduzir uma autora chamada Toshiko Tamura. Em questão de estilo e temática, ela é bem diferente das escritoras que já li e espero que possamos publicá-la também. Além disso, também pretendo traduzir um conto do Katai Tayama e outro do Riichi Yokomitsu que li no passado e de que gostei bastante. Enfim, há muita coisa que gostaria de traduzir, mas não sei se terei tempo este ano, geralmente envio minhas traduções para a Revista Nota do Tradutor2, editada por Gleiton Lentz. Então, se traduzir algo, talvez apareça por lá. O acesso às traduções é gratuito e qualquer pessoa pode fazer o download das edições anteriores. Sobre meu doutorado, a ideia é desenvolver uma pesquisa sobre a figura feminina na literatura japonesa moderna. Para isso, penso em casar a Miyamoto, a Tamura e mais algum autor, ou autores, do sexo masculino, ainda preciso definir quais estes serão. Por fim, também quero agradecer a oportunidade de falar um pouco sobre tradução e sobre Motojirô Kajii.

japonesa moderna. Para isso, penso em casar a Miyamoto, a Tamura e mais algum autor, ou autores, do sexo masculino, ainda preciso definir quais estes serão. Por fim, também quero agradecer a oportunidade de falar um pouco sobre tradução e sobre Motojirô Kajii.

1 Ensino básico em língua japonesa ou bilíngue japonês-português.

2 Link para a Revista Nota de Tradutor: http://notadotradutor.com/edicoes.html

Esperamos que vocês tenham gostado da entrevista. Se houver dúvidas e impressões, não deixe de comentar abaixo.

Caso queira ler o conto que dá título ao livro traduzido por Karen Kawana, ela publicou, em 2020, a tradução na Revista de Estudos Japoneses: https://www.revistas.usp.br/ej/article/view/185945/171720

Se quiser adquirir o livro completo, é possível comprá-lo pelo site da Editora Bestiário: https://www.bestiario.com.br/livros/limao.html

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