ELIC | Curadoria de Assuntos do Japão
Autores:
Amanda de Morais Silva – amndmorais@gmail.com
Amanda Serafim – amandakss25@gmail.com
Camila de Sousa Machado – camila.machado712@gmail.com
Suéllen Gentil – suellen.gentil@gmail.com
Revisão:
Agatha Garibe – contato@agathagaribe.com.br
Rayane Sátiro – satirorayane@gmail.com
Thiago Henrique – Th24345@gmail.com
Diante de uma discussão sobre uma obra tão marcante quanto Ribon no Kishi (リボンの騎士) – “A princesa e o cavaleiro” na tradução nacional – (1953-1956), se faz necessário contextualizar seu autor, considerado o “Deus do Mangá”. Tezuka Osamu1 (1928-1989) nasceu na cidade de Toyonaka, em Osaka, e desde cedo dava sinais de ter uma mente perspicaz e criativa, que era ainda mais estimulada pelos passeios ao célebre Teatro de Takarazuka2 e pelos filmes que seu pai exibia em seu projetor, no que poderia ser considerado uma “sessão de cinema em família”. Algumas das obras que o autor teve contato devido a esses momentos foram: O Gato Félix, Betty Boop e uma variedade de filmes da Disney, que exerceriam forte influência em seu traço posteriormente. Apesar de ser médico licenciado, sua vida foi inteiramente dedicada à produção de mangás e animações. Seu trabalho teve forte impacto na sua geração, sendo agraciado com diversos prêmios e aclamado dentro e fora do Japão até os dias de hoje (POWER, 2009).
Durante o período pós-guerra, Tezuka Osamu e diversos(as) outros(as) mangakás3 foram responsáveis por introduzir narrativas inspiradas em outros produtos artísticos, como cinema e animações, nas histórias em quadrinhos (SILVA, 2016). Esse fato ocasionou uma revolução dentro dos mangás, principalmente no estilo shoujo4. Antes da década de 50, o estilo era marcado por obras que perpetuavam o binarismo dos papéis de gênero, como a visão de que as mulheres japonesas deveriam ser boas esposas e mães sábias5 (SILVA, 2016). No pós-guerra, os shoujo-mangás passam a representar cada vez mais as meninas/mulheres como heroínas.
Dentro desse contexto, Tezuka Osamu escreve a obra Ribon no Kishi. Nela, acompanhamos a história da princesa Sapphire que por causa de um erro no céu, provocado pelo anjo Tink, recebe dois corações: um masculino e outro feminino. Durante seu nascimento, por causa das misóginas leis do seu reino, seu sexo biológico é escondido da nobreza e da população para que ela possa ascender ao trono no futuro, para evitar que o malvado Duque Duralumin torne-se rei. Logo, Sapphire recebe duas criações, uma que segue atribuições sociais em conformidade a padrões de masculinidade e outra de feminilidade.
Em simples termos, Sapphire se configura como uma princesa não convencional e “com ares de menino” por sua natureza e criação. Ao transitar entre um gênero e outro em suas façanhas, Sapphire torna confusa a linha entre homem e mulher, fato esse que fez com que parte dos fãs e da crítica especializada elogiassem o texto como sendo feminista e progressista. (KYLE, 2014, n.p).6
A centralidade do mangá Ribon no Kishi está, desta forma, na personagem Sapphire que nasce com esses dois corações graças à ação angelical, fazendo com que o mangá ganhe o seu mote principal: durante os capítulos, percebemos que no reino em que Sapphire vive – esteticamente próxima ao que conhecemos como a Europa medieval – não é permitido que mulheres possam assumir o trono, no entanto, Sapphire irá passar por incontáveis peripécias, transforma-se em uma garota de peruca loira, em um cavaleiro fantasma e até em um cisne, a fim de conseguir modificar o destino e as leis que regem esse espaço que já é considerado “misógino” na fala de um dos próprios personagens7 próximos à Sapphire.
A narrativa possui em seu tecido um senso de historicidade pulsante, uma vez que foi produzido em um contexto pós-guerra, em que o Japão estava se reerguendo em todos os âmbitos, principalmente o social, passando por transformações que remodelaram os assuntos referentes às questões culturais da cultura japonesa. Foi, então, na década de 1960, que Tezuka Osamu traz com Ribon no Kishi um tema sensível ao público, mesmo ainda nos dias atuais, isto é, a discussão de gênero para um produto de massa.
Partindo da parte para o todo, comecemos por algumas escolhas de títulos. Em português A princesa e o cavaleiro contém uma significação dúbia, uma vez que pode ser em referência à dupla vida de Sapphire, ou sobre a relação da princesa Sapphire e do Príncipe Franz, objeto de desejo da protagonista. Em inglês, Princess knight, ou, quase de forma literal, “princesa-cavaleiro”, a palavra knight aqui atua como um adjetivo à princesa. Traduzindo, ainda mais, poderíamos relacionar esse literal “princesa-cavaleiro” com as tradições do conceito de “garota-príncipe”, pois durante as historietas, a beleza da protagonista é reconhecida tanto por homens quanto por mulheres. Além de que, a revelação de sua identidade só é colocada em prova por alguns antagonistas, mas que de partida não seria uma necessidade da protagonista. Esses dois pontos, a título de exemplo, fazem com que Sapphire se aproxime desse mito literário-artístico, especialmente nos mangás japoneses como Oscar de A rosa de Versalhes e Ermínia de A Espada de Paros.
Contudo, essa subversão e profundidade não está presente apenas na personagem principal, mas também nas outras personagens femininas que pululam de capítulo em capítulo, com ressalva à cena da guerra entre as empregadas do castelo contra os guardas – maridos e familiares dessas mulheres -, a fim de proteger Sapphire do Duque. Talvez, a limitação do mangá se mostre desoladamente no final.
Apesar de Tezuka Osamu ter concebido uma perspectiva criativa esforçadamente nova para o material que se propôs, não conseguiu ao final fugir do “felizes-para-sempre”, típico dos contos de fadas da Disney, como Cinderela, Branca de Neve, A Pequena Sereia e tantos outros que estão também presentes como referências intertextuais no mangá, em que Sapphire abandona sua adjetivação guerreira para dedicar sua vida ao lado do príncipe Franz.
Se essa subversão é presente nos personagens femininos, também o é com os personagens masculinos da obra, e se padrões de feminilidade inscritos nas ações de Sapphire destacam a face escondida do príncipe – e posteriormente rei – de seu reino, também padrões de masculinidade são postos em diferentes ângulos através dos personagens que se mostram ao longo da história. Protagonistas como o Príncipe Franz, o Capitão Blood, o anjo Tink e mesmo personagens construídos como antagonistas como Plástico, filho de Duralumin, parecem afrouxar os laços atados aos papéis de gênero moldados em torno do masculino e do feminino na medida em que desenvolvem sua relação, seja direta, seja indireta, com a protagonista Sapphire. Ao passo que a própria performance masculina de Sapphire é atenuada pelo fato de possuir dois corações, há momentos em que mesmo personagens masculinos secundários têm comportamentos desviantes de um contexto ficcional patriarcal.
Plástico, filho de Duralumin, é um personagem que ilustra claramente tais particularidades. Apesar de ter papel secundário na história, é ainda exercendo sua função de rei que reconhece igual direito de voto, de divórcio e de ascendência ao trono das mulheres, favorecendo o estabelecimento de um quadro de igualdade de gênero no reino. E, se falar de masculinidade não implica necessariamente falar em ações provenientes de personagens masculinos, Osamu Tezuka adiciona interessantes traços atribuídos ao comportamento do homem do mundo ficcional também para figuras femininas, tal como Friebe, a guerreira, que assume uma posição longe da subserviência na obra.
Apesar de poder encontrar-se em Ribon no Kishi certos traços que, na nossa cultura momento atual, poderiam ser interpretados como sexistas, tal como o fato da força e impetuosidade de Sapphire advir de seu ‘coração masculino’, ou por Sapphire tender ao lado feminino como o seu traço mais gracioso, o fato de personagens como Friebe ou a deusa Vênus possuírem traços de personalidade que fogem da “delicadeza” e da “gentileza”, normalmente atribuídas às mulheres, escapam a obra da obviedade de gênero normalmente intrínseca a histórias de mangás do mesmo gênero shoujo. Nessa medida, pode-se afirmar que os traços de masculinidade e de feminilidade não estão presos aos personagens como um órgão que lhes é imanente, apesar de assim se mostrar ao início da obra. Fato é que as nuances de afeto e de zelo dos personagens uns com os outros ultrapassa os preconceitos de gênero e aprofundam a história para muito além de uma história de princesas e príncipes.
Ao deparar-se com obras subversivas que marcam seu lugar na história muito se diz sobre estarem “à frente do seu tempo”, em especial tratando-se de elogios póstumos, contudo, isso pode resultar em interpretações anacrônicas. Ribon no Kishi foi de fato revolucionário, ainda assim, estava muito bem situado em sua época, no pós Segunda Guerra Mundial, quando a nação japonesa buscava se reerguer após a derrota. Tezuka Osamu vivenciou de perto os horrores da guerra e voltou para o Japão em que as mulheres, deixadas para trás, se viram muitas vezes obrigadas a ultrapassar seus papéis de “boas esposas e mães sábias” para defender seus lares e sustentar seus filhos, papéis designadamente masculinos. Era um momento de transição, muito bem representado ao longo de todo o mangá, de reconhecer a possibilidade de ir além dos limites estanques de tais papéis. A apresentação é feita porém, sem ir mais além, como os exemplos citados da voluntariosa guerreira Friebe duelando nos torneios para encontrar um marido digno e forte para se casar, e a própria Sapphire ao expressar suas angústias de ter que esconder sua identidade feminina até vencer todas as adversidades para viver o “felizes para sempre” com o seu príncipe encantado. Apesar da busca ao fim da obra pela realocação dos estereótipos de gênero, Ribon no Kishi seguirá sendo um marco histórico para além de sua geração e um clássico que mudou o mundo dos mangás shoujos, introduzindo a tradição das heroínas femininas.
NOTAS DE RODAPÉ:
1Apesar de ser conhecido amplamente no Brasil como Osamu Tezuka, o autor é citado no texto com o sobrenome antecedendo ao nome devido a uma solicitação do governo japonês, a qual requisita que, em textos estrangeiros, os nomes japoneses sejam escritos conforme a ordem de escrita tradicional do Japão.
2Famosa companhia de teatro japonesa, fundada em 1913, composta inteiramente por mulheres.
3Mangaká é uma pessoa que cria mangás.
4Na indústria de mangás, as obras shoujo são aquelas que têm como público-alvo meninas/mulheres.
5Termo cunhado por Nakamura Masanao, durante o período Meiji, no qual o papel da mulher na sociedade japonesa deveria ser de ryôsai kenbo (良妻賢母) – “boa esposa, mãe sábia”. Neste período, o governo incentivou que a educação das mulheres tivesse o propósito fundamental de criar boas esposas e mães sábias (FREITAS,2016).
6Tradução nossa para “In these simplified terms, Sapphire is configured as an unconventional, “tomboyish” princess due to both nature and nurture. In her cross-dressing exploits and gender-bending adventures, Sapphire troubles the line between male and female, a fact that has caused some fans and reviewers to laud the text as forward-thinking and feminist.”
7Cf. “It’s all the fault of that stupid law that forbids women from ascending the throne! It’s misogynistic” (ROSEWOOD, p. 116, 2011).
REFERÊNCIAS
FREITAS, Larissa Salgues. A representação da mulher japonesa em Ki no Kawa, de Ariyoshi Sawako. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Língua e Literatura Japonesa)—Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
POWER, Natsu Onoda. God of comics: Osamu Tezuka and the creation of post-World War II manga. Mississipi. Univ. Press of Mississippi, 2009.
SILVA, Valéria. Rompendo fronteiras e tomando a palavra: Algumas reflexões sobre os quadrinhos femininos japoneses no século XX. Revista história, histórias, Brasília, v. 4, n. 7, pág. 89 -107, 2016.
KYLE, Catharine. Beauties and Beasts: Feminism and Animalistic Transformation in Osamu Tezuka’s Princess Knight. Disponível em: https://inktart.org/2014/12/22/beauties-and-beasts-feminism-and-animalistic-transformation-in-osamu-tezukas-princess-knight/ Acessado em: 4 de novembro de 2021.
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