#SextouNaÁsia, China

#SextouNaÁsia | Por que a China odeia a Mulan da Disney?

Emily Tenório
Relações Internacionais – UFGD

A animação da Disney, Mulan, inspirada em um famoso e antigo poema narrativo chinês, tornou-se um fenômeno global após seu lançamento em 1998. Ela mistura elementos típicos de outras animações do estúdio, ao mesmo tempo que quebra moldes da princesa em apuros e do amor-conquista-tudo em favor da busca de uma jovem para salvar sua família e seu país. O público chinês não é estranho às adaptações da lenda. Dentro e fora da China ela foi adaptada e reimaginada em peças, óperas, filmes e livros. Houve pelo menos 17 versões locais de filmes e TV que datam da década de 1920. Contudo, não importa quanto tempo passe, o início de sua história permanece o mesmo: uma jovem garota se disfarça de homem e vai para guerra no lugar de seu pai. Após anos de batalha contra tribos invasoras do norte volta para casa com glória e então seus companheiros finalmente descobrem que lutaram ao lado de uma mulher. O poema então conclui com a frase: Mas quando dois coelhos correm lado a lado, como você pode distinguir a fêmea do macho?

A Origem da Lenda

A versão escrita mais antiga da história de Mulan vem de um poema narrativo difundido no Norte da China durante o período das Dinastias do Norte e do Sul (420 – 589 d.C.) chamado A Balada de Mulan. É uma obra representativa das canções populares “Yuefu”[1], da Dinastia do Norte.

Mas afinal, Mulan é uma pessoa real que existiu na China ou apenas uma heroína arquetípica? E, consequentemente, a balada é um documento histórico ou um relato fictício? A falta de elementos fantasiosos na história e a semelhança com eventos reais fizeram com que historiadores de várias dinastias acreditassem que a heroína realmente tivesse existido. No entanto, pela falta de documentos históricos concretos, a maioria dos historiadores modernos acreditam que a autenticidade de sua história não pode ser verificada e, portanto, é fictícia.

Apesar disso, insistem que contexto da história se passa durante a era do norte de Wei, provavelmente sob o reinado do imperador Taiwu porque ele se envolveu em uma guerra de doze anos contra os Rouran entre 429 e 441 dC (a Balada de Mulan afirma que Mulan serviu por doze anos). A heroína, juntamente com os acontecimentos que lhe dizem respeito, possivelmente faz parte de uma narrativa derivada da vida tribal do povo Xianbei em que as mulheres frequentemente cavalgavam e participavam de atividades militares.

Em termos do poema, “Balada de Mulan”, houve divergências de pontos de vista sobre como interpretar seus significados e implicações. Uma das morais mais óbvias da balada seria o exemplo de piedade filial e lealdade da jovem heroína, comemorado em seu retorno triunfante ao final. Como o poema foi adaptado em livros, peças de teatro e eventualmente filmes, aspectos do enredo também mudaram. Em algumas adaptações, o foco principal está no gênero e na diferença entre homens e mulheres. Em outros, a principal diferença focada é ser chinês versus ser bárbaro. Cada reconto costuma refletir o contexto histórico de sua época e mudam dependendo de quem conta a história, qual conflito político está acontecendo e as normas de gênero daquele momento específico.

A Mulan na Disney

No ocidente, o filme foi um exemplo de representação para crianças asiáticas, além de trazer mensagem de empoderamento feminino e ajudar a construir mais apreço por diferentes culturas. A Disney tomou algumas liberdades para contar sua versão da história de Mulan, e mesmo cuidando para não ofender a cultura do país, o filme não agradou o público do local de nascença de Mulan. As crianças pareceram gostar, mas a bilheteria da animação no país foi um fracasso.

Descrito por vezes como caricato e “americanizado” demais, há muitas coisas cultural e historicamente erradas no filme que certamente influenciou a opinião dos chineses. Mulan sofreu com a tendência americana de fundir culturas asiáticas – quando Mulan está se recuperando, a bandeira em sua tenda do hospital é japonesa, não chinesa. Mas os problemas são mais profundos do que erros óbvios como esse.

Apesar da dedicação do departamento de arte, a representação da cultura chinesa da Disney é filtrada por uma lente ocidental, com grande parte da equipe de produção sendo branca. Isso fez com que o filme não se traduzisse bem como uma história chinesa. Enquanto os valores familiares demonstrados pela família unida de Mulan estão alinhados com os princípios tradicionais chineses, os ideais autoconfiantes e individualistas que o filme defende são mais frequentemente vistos nas narrativas ocidentais – essas qualidades são frequentemente vistas como auto-engrandecimento e egoísta pelos chineses.

Além disso, o governo chinês desencorajou deliberadamente que fosse recebido popularmente, preferindo não comercializar tantos filmes estrangeiros, entre outras razões diplomáticas. Na China, Mulan foi lançado em fevereiro, após o Ano Novo Chinês, passando a temporada de filmes de fim de ano.

O debate entorno do filme mesmo após mais de duas décadas de seu lançamento deixa claro o quão significativo Mulan permanece.


[1] Yuefu é uma forma de poesia chinesa derivada da tradição das baladas folclóricas. O estilo leva o nome do Yuefu (“Departamento de Música”) criado em 120 a.C. por Wudi com a finalidade de coletar canções e suas partituras musicais para ocasiões cerimoniais na corte.

Confira o poema na íntegra:

O som de um suspiro após o outro,

Enquanto Mulan tece à porta.

Nenhum som do tear e da lançadeira,

Apenas o da menina lamentando.

Pergunte a ela por quem ela pensa,

Pergunte a ela por quem ela deseja.

“Não há ninguém em quem eu pense,

Não há ninguém que eu anseie.”

Ontem à noite eu vi a nota do exército

O Khan está convocando para um grande projeto –

Uma dúzia de volumes de pergaminhos de batalha,

Cada um com o nome do meu pai.

Meu pai não tem filho adulto,

 E eu não tenho irmão mais velho.

Estou disposta a comprar um cavalo e uma sela,

Ir para a batalha no lugar do meu pai.”

Ela compra um bom cavalo no mercado leste;

Uma sela e cobertor no mercado oeste

Um freio no mercado sul

E um longo chicote no mercado norte.

Ela se despede de seus pais ao amanhece

Acampa ao lado do rio Amarelo ao entardecer.

Nenhum som de seus pais saudando sua filha,

Apenas as águas agitadas do rio Amarelo.

Ela sai do rio Amarelo ao amanhecer,

Para alcançar as Montanhas Negras ao entardecer.

Nenhum som de seus pais saudando sua filha,

Apenas os gritos da cavalaria bárbara nas colinas Yan.

Dez mil milhas que ela montou em guerra,

Cruzando passagens e montanhas como se estivesse em uma asa.

No ar do norte, vem o gongo da sentinela,

Uma luz fria brilha em sua camada de aço.

O general morto depois de cem batalhas,

Os guerreiros retornam após dez anos.

Eles retornaram para encontrar o imperador,

o Filho do Céu sentado no palácio imperial.

Os rolos de mérito giram uma dúzia de vezes,

Recompensas na casa das centenas e milhares.

O Khan pergunta a ela o que ela deseja,

“Não preciso do cargo de cavalheiro oficial,

Peço o cavalo mais rápido,

Para me levar de volta à minha cidade natal.”

Os pais dela ouvindo a garota voltar,

Foram para os subúrbios para recebê-la de volta.

A irmã mais velha ouvindo a irmã voltar,

Ajusta seu vermelho à porta.

O irmãozinho ouvindo sua irmã retornar,

Afia sua faca para porcos e cordeiros.

“Eu abro a porta da câmara leste,

E sento-me na minha cama na câmara oeste.

Tiro minha capa de batalha,

E vista minhas roupas dos velhos tempos.

Eu ajusto meus cabelos finos no peitoril da janela,

E aplico minha maquiagem bisque pelo espelho.

Eu saio para ver meus camaradas de armas,

Eles estão todos surpresos e espantados:

‘Viajamos doze anos juntos,

No entanto, não sabia que Mulan era uma dama!'”

O cervo salta aqui e ali,

Enquanto a corça tem olhos estreitos.

Mas quando dois coelhos correm lado a lado,

Como você pode distinguir a fêmea do macho?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITANNICA. The Editors of Encyclopaedia. “yuefu”. Encyclopedia Britannica, 5 Jul. 2019. Disponível em: https://www.britannica.com/art/yuefu-Chinese-poetic-form. Acesso em: 12 Mar. 2022.

CHONG, Linda; DIEU, Echo. Disney’s Attempts at Asian Representation. 5 nov. 2020. Disponível em: <https://thebottomline.as.ucsb.edu/2020/11/disneys-attempts-at-asian-representation./> Acesso em: 08 mar. 2022

DONG, Lan. Writing Chinese America into Words and Images: Storytelling and Retelling of The Song of Mu Lan. The Lion and the Unicorn, 30(2), 218–233. doi:10.1353/uni.2006.0020

LIAO, Débora. A IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE NO NOVO FILME DE MULAN. 17 jul. 2019. Disponível em: <https://www.garotasgeeks.com/a-importancia-da-representatividade-no-novo-filme-de-mulan/> Acesso em: 09 mar. 2022.

WEHRSTEDT, Lisa. Disney’s classic ‘Mulan’ flopped in China because audiences didn’t think the heroine looked Chinese enough. 25 jun. 2020. Disponível em: ttps://www.insider.com/disney-classic-mulan-flopped-china-audiences-didnt-think-she-looked-chinese-enough-2020-6> Acesso em: 09 mar. 2022.

Yu, H., 2015. From Kundun to Mulan: A Political Economic Case Study of Disney and China. ASIANetwork Exchange: A Journal for Asian Studies in the Liberal Arts, 22(1), pp.12–22. DOI: http://doi.org/10.16995/ane.100

ZHANG, Joy. Asian representation in animation. 6 ago. 2020. Disponível em: <https://www.kollabsf.org/kollabblogposts/2020/8/6/asian-representation-in-animation> Acesso em: 08 mar. 2022

ZHAO, Xiran Jay. Everything culturally right and wrong with Mulan 1998. Youtube, 24 out. 2020. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8SHC7CnmErM> Acesso em: 09 mar. 2022.

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