Curadoria de Matrizes Energéticas e Meio Ambiente
Amilson Albuquerque Limeira Filho
Consumismo, racionalidade e imprevisibilidade são marcas do homem contemporâneo, que ao longo dos séculos, tem trilhado percurso geológico diferenciado em relação às demais espécies, direcionando esforços à conquista de territórios, apropriação de recursos, extração de matérias-primas, beneficiamento e comercialização de produtos em escalas cada vez mais amplas, desafiando os limites geográficos e ressignificando os lapsos temporais, minimizando-lhes em proporções nunca antes vistas, graças aos reflexos do fenômeno globalizante.
A travessia de uma época situada nos limites do recuo glacial, inaugurada pelo Holoceno, rumo ao desconcertante estado de arte delimitante do Antropoceno, não reduz, no entanto, o escopo da discussão à mera categorização teórica ou localização espaço-temporal, quer seja por indicar renovado estilo de vida sublinhado por práticas econômicas, sociais e culturais peculiares, ou mesmo por reavaliar os impactos das relações humanas, considerando suas crescentes interferências, com subsequente geração de externalidades, determinando, fatidicamente, a gravidade de um momento sem precedentes, circunscrito à excessiva ingerência antrópica, elevada assunção de riscos (concretos e potenciais) e ultrapassagem dos limites planetários (MÖLLERS; SCHWÄGERL; TRISCHLER, 2015).
Em interessante publicação, porém não menos preocupante, Steffen et al. (2015) elenca, em rol numérico, os principais limites planetários (planetary boundaries) em risco no contexto antropocênico, considerando como padrões de segurança vital os seguintes parâmetros: i) mudanças climáticas; ii) diminuição de ozônio estratosférico; iii) acidificação dos oceanos; iv) alterações dos ciclos biogeoquímicos de nitrogênio e fósforo; v) perda da biodiversidade; vi) mudanças no uso do solo; vii) uso de recursos hídricos em larga escala; viii) utilização de aerossóis com geração de partículas na atmosfera; ix) geração de externalidades ambientais.
Pondera-se, em razão de divergências científicas, que embora não existam consensos acerca dos coeficientes que determinam possíveis avanços dos limites de seguridade, nosso planeta vem ocupando múltiplas posições de risco que se interconectam, reconhecendo-se a ultrapassagem de pelo menos dois destes limites: perda de biodiversidade e adição de nitrogênio e fósforo ao solo, com aproximação crítica dos coeficientes limitantes que determinam os processos de mudanças climáticas e de alterações no uso do solo (ARTAXO,
2014, p. 21), indicando a irreversibilidade de um processo complexo de mudanças que afetam não só o equilíbrio climático planetário, como também a própria integridade das relações ecossistêmicas.
A contragosto do pensamento politicamente correto, ou, mais precisamente, partindo de um sentido contrário ao discurso emitido, outrora, pelo controverso Clube de Roma, e cuja disseminação influenciou, historicamente, parcela considerável de ecólogos e ambientalistas de todo o mundo, sob diversas perspectivas, uma leitura amorfa do conceito de Antropoceno, radicada dos reais fatores que lhe determinam, como uma espécie de constatação científica universalmente válida, pode conduzir o leitor à disparidade de dados, coeficientes referenciais nem sempre convergentes e constatações, no mínimo, ambíguas, inconclusivas ou mesmo incoerentes, já que suas nuances são materialmente condicionadas e oscilam em diferentes sistemas econômicos, razão pela qual teóricos como Moore, chegam mesmo a se questionar: se, afinal de contas, referido conceito não deveria retratar, na realidade, momento ainda mais específico e que remeteria a uma espécie de “Capitoloceno” (MOORE, 2016), considerando a substancial relevância do modelo econômico capitalista no avanço dos limites planetários.
Exemplo claro e ilustrativo pode ser obtido na China, cujas idiossincrasias de seu atual modelo econômico permitem inferir que, embora seja o maior emissor mundial de gases de efeito estufa (GEE) desde 2007, vindo a ultrapassar os Estados Unidos da América, vem ocupando, no entanto, posição global estratégica nas negociações climáticas, sobretudo pelo seu status e influência junto ao G77, tendo participado assiduamente durante a elaboração da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC), em 1992, e definição do Protocolo de Kyoto (PK), em 1997 (RIBEIRO, 2005), demonstrando inequívoco interesse sobre o tema, participando, inclusive, mais recentemente, da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP18), realizada em Doha, no Qatar, por volta do ano de 2012, na condição de nação observadora.
Reconhece-se, ainda, que se muito embora a adoção de um Projeto de Abertura e Reforma Econômica tenha ampliado a quantidade de problemas relacionados à escassez de terras aráveis, gerando externalidades e aumento expressivo da demanda por recursos energéticos, atingindo cerca de 75% dos rios e lagos e comprometendo, inclusive, 90% das águas subterrâneas urbanas (sendo 28% de seus corpos hídricos tóxicos, sem serventia nenhuma para uso agrícola), repercutindo na redução da quantidade de aquíferos subterrâneos, cada vez mais exauridos em virtude da diminuição dos lençóis freáticos ao Norte do país (SHAPIRO, 2012); a implantação de políticas ambientais, de outro modo, inaugura um novo cenário no país, ainda que essencialmente motivada por fins desenvolvimentistas (LYRIO, 2010; ZHANG, 2011), o que se traduz na adoção de um modelo econômico de baixo-carbono, consoante outrora preconizado pelo ambicioso Projeto de Reforma chinês.
Entre aceleracionistas, ecomodernistas e Terranos (BEZERRA, 2017), o conflito que, anteriormente, teria impulsionado a criação de uma Comissão Internacional de Estratigrafia (International Commission on Stratigraphy – ICS), motivada pela suspeita de pretensa tutela mercadológica em prol de interesses setoriais (agro)industriais específicos (SQS, 2019), adquire, atualmente, roupagem discursiva e estratégica no plano do comércio internacional, sobretudo quando se considera a gradativa relevância que nações emergentes passam a adquirir no dinâmico contexto do comércio internacional, pulverizado por influências econômicas periféricas e fadado à possíveis cisões hegemônicas.
Ademais, a regência tardia de fenômenos que aparentemente fogem ao controle da
humanidade, traz consigo a imediação de um paradigma de invencibilidade ou irrefreabilidade, ambientado em diferentes “ares” (DELEUZE, 2013) e moldado narrativa e institucionalmente, merecendo destaque o alerta de renomado antropólogo Latour (2016, p. 63), ao reconhecer que “quanto mais avançamos no tempo, menos fica possível distinguir a ação humana, o uso das técnicas, a passagem pelas ciências e a invasão da política”, e isso se deve, em parte, pela disputa político-ideológica dos conhecimentos cientificamente produzidos, e, complementarmente, pelo valor econômico e decisório que tais parâmetros passam a ter no contexto da economia global.
Perceber-se que o Antropoceno é, portanto, e antes de tudo, um ato político, que exigirá da comunidade internacional não só o amadurecimento de posturas decisórias voltadas à preservação da vida, como a própria readequação de práticas econômicas sem quedar-se em vazios semânticos ou estratégias puramente mercadológicas.
Este exercício de simbiose reivindica uma retomada da consciência do valor da vida
no âmbito dos sistemas econômicos, o que poderá ser influenciado pelos atuais processos de governança, ações individuais, sociais, setoriais, institucionais, estatais e paraestatais, ou, ainda, mediante determinações, acordos e convenções de coletividades intergovernamentais e organizações internacionais, imbuídos de um ideal comum e que, paradoxalmente, resgata a responsabilidade do homem, centralizando-a em virtude da manutenção de sua existência presente e futura. Bem-vindo ao Antropoceno!
REFERÊNCIAS
ARTAXO, P. Revista USP, São Paulo, n. 103, p. 13-24, 2014. disponível em: <
BEZERRA, R. V. M. Tornarmo-nos Terranos no Antropoceno: estamos atrasados? In: Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, Anais… São Paulo: USP, maio 2017, p. 20-42. Disponível em:
<https://ocs.ige.unicamp.br/ojs/react/article/download/2739/2602/>. Acesso em: 09 jun. 2021.
DELEUZE, G. Conversações. 3ª ed. São Paulo: 34, 2013. LATOUR, B. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34, 2016.
LYRIO, M. C. A ascensão da China como potência: fundamentos políticos internos. Brasília: Funag, 2010.
MÖLLERS, N.; SCHWÄGERL, C.; TRISCHLER, H. Willkommen im Anthropozän: Unsere Verantwortung für die Zukunft der Erde Gebundene Ausgabe. Deutsches Museum, 2015. MOORE, J. W. Anthropocene or capitalocene? Nature, history, and the crisis of capitalism.
Kairos: Oakland, CA, 2016.
RIBEIRO, W. C. A ordem ambiental internacional. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
SHAPIRO, J. China’s Environmental Challenges. Cambridge: Polity Press, 2012.
SQS, Subcommission on Quaternary Stratigraphy. Working Group on the ‘Anthropocene’,
maio 2019. Disponível em: <quaternary.stratigraphy.org/working-groups/anthropocene/>.
Acesso em: 09 jun. 2021.
STEFFEN, W. et al. “Planetary Boundaries: Guiding Human Development on a Changing Planet”. Science, v. 347, p. 736-46, 2015.
ZHANG, Z. X. Energy and Environmental Policy in China. Towards a Low-carbon Economy. New horizons in environmental economics. Cheltenhan, UK/Northampton, MA: Edward Elgar, 2011.
Leave a Reply