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ARTIGO DE OPINIÃO | O nexo entre transição energética e cidades sustentáveis na China

Curadoria de Matrizes Energéticas e Meio Ambiente

Daniel de Oliveira Vasconcelos

Mestre em Estudos Chineses pela Universidade de Pequim.

Pesquisa sobre política energética e urbanização na China.

No último mês, o tema da escassez energética na China ganhou os holofotes. Por conta de apagões e de racionamento de energia em diversas províncias (FISHMAN; ZHANG, 2021), vários analistas discutiram a retomada do crescimento chinês pós-pandemia frente a problemas conjunturais e sistêmicos da transição energética chinesa. Enquanto alguns, como Tatiana Prazeres (2021), relacionaram este fenômeno à crise climática, outros (WANG; WANG, 2021; FISHMAN; ZHANG, 2021) também olharam para a alta do preço do carvão, novas diretrizes do governo chinês e a insuficiência da produção por outras fontes de energia.

Contudo, para que a China possa ser bem sucedida em sua transição energética, não basta somente olhar para o lado da oferta – ou da produção de energia. De fato, a China ainda é altamente dependente do carvão para a geração de energia no país (NBS, 2020), e a revolução das energias renováveis deve continuar como prioridade para reverter esse quadro. Anteriormente, em outro texto (VASCONCELOS, 2018), também alertei sobre a dificuldade de se alterar toda a estrutura econômica chinesa acostumada, por décadas, com um modelo insustentável de produção a todo custo. Por isso, os chineses vêm esforçando na transformação de suas cidades em centros urbanos mais sustentáveis.

No fim das contas, é isso que está no cerne do conceito de “civilização ecológica” de Xi Jinping (2021; XIANG-CHAO, 2018). A produção de energia serve a algum mercado e, historicamente, as cidades chinesas, com seu intenso processo de urbanização e industrialização, monopolizaram o consumo desenfreado dessa energia baseada no carvão. O aumento exorbitante da população urbana, que passou de 15% na década de 1980 para 60% da população chinesa em anos recentes (NBS, 2020), juntamente com a indústria de exportação, exploração de recursos naturais e imobiliária, que, apesar do processo de desaceleração e desindustrialização da economia chinesa, ainda acumulam a impressionante fatia de 40% do PIB chinês (TEXTOR, 2021), agravaram enormemente os problemas ambientais e de saúde da população. É nas cidades onde mais se gasta energia e mais se polui o meio ambiente.

Em Qingdao, cidade costeira da província de Shandong. O céu poluído se mescla com a construção
civil e contrasta com a área verde de um parque urbano. Fonte: autor, 2019.

Sem uma transição para cidades sustentáveis, enfim, não há processo de transição energética bem sucedido. A China, por meio de vários governos provinciais, mesmo antes de seu novo plano de urbanização, estabeleceu alguns programas pilotos de transformação de suas cidades em zonas de desenvolvimento sustentável (KANG et al, 2019). Com diversos nomes – eco-cidades, cidades esponjas, cidades resilientes, cidades de baixo carbono, cidades de economia circular (KANG et al, 2019) –, e sob diversas jurisdições, esses modelos de cidades sustentáveis têm por objetivo primordial acelerar o processo de adaptação da infraestrutura urbana aos novos sistemas de energia sustentável.

Em busca de cidades sustentáveis na China: oportunidades e desafios

Uma verdadeira revolução urbana na China é nada mais do que um imperativo. Os grandes centros urbanos chineses concentram grandes problemas ambientais, como poluição do ar e da água, e outros problemas relacionamos ao modelo urbanístico. Ao caminhar nas ruas de Pequim, por exemplo, é incontornável a sensação de que o ar que respira é tóxico. A capital da China, com mais de 20 milhões de habitantes, está localizada em uma região de indústria intensiva em energia, que também sofre de escassez de água. Seu desenvolvimento urbano privilegiou o transporte individual, apesar de que, hoje, seu sistema público de metrô é um dos mais avançados do mundo. A indústria imobiliária evoluiu de forma desenfreada, a fim de abastecer a demanda dos migrantes que lá chegavam.

Pequim é apenas uma das centenas de cidades na China que sofrem por problemas semelhantes. Por conta disso, o governo central chinês lançou, em 2014, o seu Novo Plano de Urbanização 2014-2020, procurando balancear o desenvolvimento das cidades costeiras com o restante do país, desafogando áreas com alta densidade populacional e uso intensivo e insustentável de energia. A implementação e sucesso deste plano é dúbio (CHU, 2020), mas, de qualquer forma, ele estabelece um arcabouço institucional e teórico para que governos provinciais e locais projetem seus modelos de transformação urbana (KANG et al, 2019).

Na esteira dos novos compromissos firmados pela China para o combate às mudanças climáticas, como conquistar a neutralidade de carbono até 2060, prometida por Xi Jinping na Assembleia Geral da ONU, em 2020 (XI, 2020), estes novos modelos de desenvolvimento urbano são indispensáveis e oferecem uma gama de oportunidades para a China e o mundo. O projeto de eco-cidades, por exemplo, procura aumentar áreas verdes nas cidades, racionalizar o uso da energia por meio da adaptação da infraestrutura urbana, criar incentivos para o menor uso de transportes individuais movidos a combustíveis fósseis, etc. De forma semelhante, as cidades de economia circular focam no desenvolvimento de sistemas de reutilização de recursos energéticos, materiais, etc. Talvez o que melhor ilustra isso é o faraônico projeto de construção da cidade de Xiong’an, a apenas uma hora e meia ao sul de Pequim, desenhada do zero para ser uma cidade ultra-tecnológica, verde e sustentável.

Isso cria oportunidades para o crescimento da economia verde, já que uma transição urbana na China gera enormes demandas por novas tecnologias clean-tech e por novos serviços para a modernização do planejamento urbano. Além disso, ela sinaliza para a obsolescência da estrutura econômica baseada no carvão, desincentivando sua produção. Se bem sucedidas, as diversas iniciativas de transição urbana transformarão as cidades chinesas em ambientes mais saudáveis para a população.

Entretanto, a busca por cidades sustentáveis na China enfrenta uma série de desafios. Como a recente crise energética demonstrou, as cidades chinesas ainda não estão adaptadas para a transição energética mais dependente em energias renováveis. Isso pode gerar desaceleração econômica e menor incentivo aos governos locais – que, em muitos lugares, ainda têm como meta o crescimento a todo custo – a implementarem ações de transformação verde em seus centros urbanos. Soma-se a isso o desafio reformar o notório setor imobiliário, especulativo e ineficiente. Ele movimenta uma economia intensiva em energia para a construção de prédios não só carentes de sistemas eficientes no gasto de energia e outros recursos, mas de baixa qualidade infraestrutural – muitos analistas especulam que as construções na China são feitas para durar uma ou duas décadas, para depois serem demolidas e reconstruídas.

Se a adaptação de toda infraestrutura urbana é um desafio enorme, ainda mais desafiador será a mudança de hábitos de uma população urbana de mais de 1 bilhão de pessoas acostumada com um modelo insustentável no longo prazo – mas que possibilitou uma rápida ascensão econômica e social. Quem se disporá a mudar o que está dando “certo”?

Conclusão

O desenvolvimento sustentável das cidades chinesas é de interesse comum. Ele afeta o consumo e a produção de energia de vários países, movimenta o setor clean-tech, melhora os índices de poluição atmosférica de todo o continente. É por isso que o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente lançou, recentemente, um Guia para Cidades e Comunidades sustentáveis na China (PNUMA, 2018). Mas diversas iniciativas são principalmente locais: vários governos e entidades da sociedade civil chinesa têm contribuído para a evolução de arcabouços técnicos, institucionais e conceituais que possam ser replicados em outras regiões do país.Os desafios desta transição urbana são muitos. É um processo lento e que exige um novo contrato social de convívio urbano. Porém, sem ela, não há transição energética possível. Os holofotes também devem, portanto, mirar na forma como as cidades chinesas estão se adaptando ao seu sonho de uma “civilização ecológica”.

REFERÊNCIAS

CHU, Yin-wah. China’s new urbanization plan: Progress and structural constraints. Cities, vol. 103, 2020.FISHMAN, David; ZHANG, Jenny. Volatility in Chinese Power Supply. Watching Brief. The Lantau Group, 2021. Disponível em: https://www.lantaugroup.com/file/brief_china_volatile_sep21.pdf. Acesso em: 13 out. 2021.

KANG, Wenmei et al. Building Sustainable Cities in China: Experience, Challenges, and Prospects. Chinese Journal of Urban and Environmental Studies, Vol. 7, No. 1, 2019.NBS. 2020 China Statistical Yearbook. National Bureau of Statistics, 2020.PNUMA. Guidelines for Sustainable Cities and Communities in China. United Nations Environmental Programme, 2018.PRAZERES, Tatiana.

Crise Energética na China evidencia desafios da transição climática. Folha de São Paulo, 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatiana-prazeres/2021/09/crise-energetica-na-china-evidencia-desafios-da-transicao-climatica.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolhachina. Acesso em: 13 out. 2021.

TEXTOR, C. Share of GDP in China in 2020, by industry. Statista, 2021. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/1124008/china-composition-of-gdp-by-industry/. Acesso em: 13 out. 2021.

VASCONCELOS, Daniel de Oliveira. The Stumbling Blocks to China’s Green Transition: How fast can China develop a “green, low carbon power system”?. The Diplomat, 2018 Disponível em: https://thediplomat.com/2018/04/the-stumbling-blocks-to-chinas-green-transition/. Acesso em: 17 nov. 2018.

WANG, Zichen; WANG, Alexander. Comprehensive Q&A on China’s power supply, electricity rationing, etc. Pekingnology, 2021. Disponível em: https://pekingnology.substack.com/p/comprehensive-q-and-a-on-chinas-power. Acesso em: 13 out. 2021.

XI, Jinping. Full text: Xi Jinping’s speech at the General Debate of the 75th session of the United Nations General Assembly. CGTN, 2020. Disponível em: https://news.cgtn.com/news/2020-09-23/Full-text-Xi-Jinping-s-speech-at-General-Debate-of-UNGA-U07X2dn8Ag/index.html Acesso em: 10 ago. 2021.

XIANG-CHAO, P. Research on Xi Jinping’s Thought of Ecological Civilization and Environment Sustainable Development. IOP Conference Series: Earth and Environmental Science, v. 153, n. 6, 2018.

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