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ARTIGO DE OPINIÃO | Mangá e ensino de história: um olhar sobre a obra Ruroni Kenshin

Este artigo de opinião é resultado da parceria
entre os GT’s ELIC e Cine Debate da Curadoria
de Assuntos do Japão

Dionson Ferreira Canova Júnior (dionsoncanova@gmail.com)
Jéssica Maria do Nascimento Silva (jessica.mnsilva@ufpe.com.br)
João Victor de Melo Pontes (joaovictormelopontes@gmail.com)
Thiago Henrique Oliveira Jardim (th24345@gmail.com)

Sob olhares de pesquisadores e profissionais – como por exemplo Moacir Gadotti, José Carlos Libâneo, Juarez Dayrell, entre outros -, os processos de educação formal têm sido alvo de muitos estudos e reflexões sobre os limites da sala de aula. Tais estudos buscam rever práticas e propor alternativas que auxiliem os professores no desenvolvimento da aula e os alunos nos seus processos individualizados de aprendizagem. Sendo assim, levantamos algumas reflexões sobre as possibilidades do uso de mangás no ambiente escolar, com o intuito de abordar didaticamente a história do Japão. Diante de uma enorme variedade de mangás, selecionamos o mangá Samurai X (Rurouni Kenshin – Meiji Kenkaku Romantan)2, do mangaká Nobuhiro Watsuki, por tratar de um período histórico de ruptura na estrutura política e social do país, saindo de séculos do governo shogunato3, com características feudais 45, para um sistema político e econômico mais voltado para a modernização. Como também, devido ao grande apelo popular que possui através de suas adaptações em formato anime e filmes live-action6, o que torna a obra bastante popular entre os jovens. Aliado a isto, o mangá possibilita compreendermos conceitos importantes para a construção do conhecimento histórico como bushido7, shogunato e modernização.

Neste processo de reflexão crítica, partimos de uma concepção que vê os mangás como produto cultural nipônico e, por sua vez, carregados de elementos culturais e históricos pertinentes ao processo de ensino e aprendizagem. Mas para além das questões históricas e culturais, encontramos também nos mangás uma importante ferramenta para o desenvolvimento do hábito de leitura, tendo em vista que o gênero, segundo Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos (2009)8, ganha cada vez mais espaço entre os jovens brasileiros. Além disso, e pensando nos processos de aprendizagem dos alunos, de acordo com Santos (2008)9, a “aprendizagem somente ocorre se quatro condições básicas forem atendidas: a motivação, o interesse, a habilidade de compartilhar experiências e a habilidade de interagir com os diferentes contextos”.

Rurouni Kenshin: o Japão na sala de aula

Desde 2006, com a utilização do mangá Na Prisão, de Kazuichi Hanawa10, no PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), as HQs passaram a ter um lugar nos anos finais do Ensino Fundamental. Essa ação possibilitou vislumbrar possibilidades pedagógicas que tragam novas perspectivas para a sala de aula. Dessa forma, o uso dos mangás contribui diretamente para uma aproximação com uma determinada cultura asiática, o que permite o desenvolvimento da criticidade dos alunos diante dos mais variados aspectos.

Sendo assim, o mangá que propomos como material pedagógico permite não somente compreender aspectos de identidade da sociedade japonesa, como também possibilita uma ruptura nos contextos eurocêntricos da malha curricular. Fato esse facilmente vislumbrado nas propostas curriculares presentes na BNCC (Base Nacional Comum Curricular)11. Tomando como exemplo os anos finais do Ensino Fundamental, são raros os momentos em que o documento propõe intervenções que “fogem” do escopo do ensino da história ocidental e considera o continente asiático. A título de exemplo, encontramos os estudos das invasões romanas no Oriente, a influência de sua cultura em seus domínios, o mediterrâneo e as relações com o Oriente Médio, além do mercantilismo e o processo de conquista do Império Português. Fora isso, não há a presença significativa de temas ligados à Ásia no ensino médio, além de ficar evidente a falta de novos embasamentos sobre o Japão. De acordo com a historiadora Circe Bittencourt12, essa reduzida alusão a outras histórias não europeias nos currículos escolares se deve ao grande enfoque dado à “História Global” que, na realidade, se reduz à história das civilizações europeias ocidentais. Diante desse cenário, vemos no uso dos mangás – gênero tipicamente japonês – a possibilidade de colocar em foco a história do Japão a partir de uma ferramenta de ensino que se aproxima dos alunos, através do seu forte apelo imagético e dinâmico, e faz com que o conteúdo seja trabalhado de maneira muito mais prazerosa e dinâmica.

No caso de Rurouni Kenshin, por exemplo, pode-se pensar a aplicação em sala de aula após análise de seu enredo e compreensão dos principais aspectos presentes na obra. Ambientado no início da Era Meiji (1868-1912) no Japão, o enredo mostra o ex-samurai Kenshin Himura, que após lutar pela volta do imperador ao poder contra o Shogunato Tokugawa (1603-1867), decide abandonar a espada e viver como um andarilho. Dez anos após a Restauração Meiji (1868-1869), o espadachim volta à ativa para proteger os interesses da nação e as pessoas com as quais criou laços afetivos. A imagem de Kenshin nos mostra mais do que um samurai que desiste de matar em prol de um mundo de paz. A obra apresenta um processo de ruptura no Japão, em que a lei de não usar a espada reflete os novos tempos que o país desejou após as sangrentas batalhas. É o momento que retrata os ideais do shogunato e do recente shogun13 Tokugawa Yoshinobu (1866-1867), que buscava a expulsão dos estrangeiros, e dos apoiadores do imperador Matsuhito (1867-1912), que eram a favor da abertura dos portos, o que transforma radicalmente o Japão e suas estruturas sociais, políticas, culturais e religiosas. O país entrou na era da modernização, nos moldes ocidentais, e aqui está a enorme capacidade da obra de conceber caminhos para análises em sala de aula.

O mangá Rurouni Kenshin é uma obra que nos apresenta personagens baseados em figuras históricas reais, o que já o coloca como importante material pedagógico para o trabalho com a história japonesa. É a partir dessas figuras que os professores poderão iniciar discussões relevantes sobre a transição do Período Edo (1603-1868) e o início do Período Meiji (1868-1912) e todo o desenvolvimento nacional japonês. Partindo do próprio protagonista, possivelmente inspirado em um homem chamado Kawakami Gensai1415(1834-1871), um dos maiores hitokiri16(人斬) do período Bakumatsu (1853-1867), é possível trazer para a sala de aula conteúdos que destaquem processos fundamentais para a compreensão do Japão que conhecemos hoje.

Por exemplo, os alunos poderão observar o desenvolvimento social do país durante o conflito, analisando os ideais de cada grupo e as relações políticas existentes em cada cenário. De um lado, havia o interesse do Shogunato Tokugawa em permanecer no poder, continuando o sistema político, econômico e social na condução da sociedade, e do outro lado havia um movimento de classes que apoiavam a volta do imperador, o que traria mudanças político-econômicas ao romper com os ideais do governo Tokugawa, fazendo o Japão adentrar na esfera capitalista com a modernização das estruturas e criação de diversas instituições nacional.

Ao tomar o mangá Rurouni Kenshin como material de ensino, os professores de história encontram solo fértil para discutir o que foi a modernização Meiji. Através dos dilemas retratados pelo mangá, é possível abordar em sala de aula as mudanças internas trazidas pela abertura das relações internacionais que resultam numa nova concepção de nação. O início do movimento de construção daquilo que vamos entender como Japão moderno está presente na obra de Nobuhiro Watsuki, o que a torna tão interessante para o processo de ensino e aprendizagem.

Por fim, vemos como uma opção inovadora e didática o uso da obra Rurouni Kenshin aliada à historiografia para introduzir o conteúdo e despertar o interesse sobre história asiática, servindo como recurso para abordar, por exemplo, a comparação entre a modernização japonesa e alguns países ocidentais do Medievo, analisando principais causas e mudanças na sociedade. É importante destacar que o mangá não substitui o livro didático, mas pode ser uma ferramenta visual, com uma linguagem própria, capaz de produzir novos conhecimentos a respeito de temas pouco difundidos no Brasil. Além disso, Vergueiro (2009)17 vê nas histórias em quadrinhos a possibilidade de aumentar a motivação dos alunos em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, encorajando a curiosidade e incitando o senso crítico.


1 Mangá é o termo para história em quadrinhos no Japão.

2 No Japão, a obra foi produzida entre os anos 1994 e 1999, enquanto que no Brasil entre 2001 a 2003, e posteriormente, relançado entre 2012 e 2015.

3 Sistema de governo liderado pelo Shogun, líder militar supremo da nação, onde o imperador apesar de seu status.

4 Segundo Silva & Silva (2009, p. 150) o Feudalismo é um conceito histórico para servir de fundamentação teórica sobre determinado período na Europa, mais detalhadamente na França. Contudo, serve como conteúdo de análise para a realidade japonesa medieval durante o Shogunato.

5 SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2.ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

6 Termo utilizado para definir a cinematografia através de atores reais em vez de animação.

7 Traduzido como “caminho do guerreiro” é um código de vida e conduta adotado pelos samurais.

8 VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009.

9 SANTOS, J. C. F. dos. Aprendizagem Significativa: modalidades de aprendizagem e o papel do professor. Porto Alegre: Mediação, 2008.

10 VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE. In: Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. 1. ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2019. p. 14.

11 BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>. Acesso em: 17 ago. 2021.

12 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Conteúdos históricos: como selecionar? In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. pp. 135-172.

13 Título militar concedido pelo imperador que comandava a força militar.

14 O autor Luiz Feijó fala em seu artigo “A sociedade japonesa do primeiro decênio da Restauração Meiji (1868) na ótica do mangá Rurouni Kenshin de Watsuki Nobuhiro” que Nobuhiro se baseia em Gensai para criar Kenshin. Apesar disto, em sua pesquisa não há qualquer menção do autor para este fato.

15 COELHO FEIJÓ, Luiz Carlos. A sociedade japonesa do primeiro decênio da Restauração Meiji (1868) na ótica do mangá Rurouni Kenshin de Watsuki Nobuhiro. História em Revista: revista do núcleo de documentação histórica, v. 17, n. 18, p. 223-233, 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/HistRev/article/view/12359/7750>. Acesso em: 19 ago. 2021.

16 Hitokiri é um termo que significa o ato ou a pessoa que corta com a espada. É daí que vem o famoso apelido de Kenshin: o retalhador.

17 VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQS no ensino. In: BARBOSA, Alexandre et al. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009. p.07-29.

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