Artigos de opinião, Japão

ARTIGO DE OPINIÃO | Castelo Shuri e o processo de reconstrução de um patrimônio

Curadoria do Japão

Amanda de Morais – amndmorais@gmail.com

Amanda Serafim – amandakss25@gmail.com 

Larissa Redditt – lariredditt@gmail.com

Maria Gabriela Pedrosa – mariagpedrosa@gmail.com

Suéllen Gentil – suellen.gentil@gmail.com 

O reino de Ryūkyū 琉球 foi incorporado ao Estado japonês moderno em 1879 e se tornou a província de Okinawa 沖縄 (AKAMINE, 2017, p. 152). Posteriormente, a região esteve sob o poder dos Estados Unidos entre 1945 e 1972, quando foi retornada ao Japão (LOO, 2014, p. 149). Entretanto, até hoje a relação entre o povo okinawano e o Japão não é completamente harmoniosa.

No contexto da formação do Japão enquanto Estado Nacional moderno, o governo nacional do período Meiji utilizou diversas ferramentas a fim de construir uma identidade que unisse todos os habitantes do arquipélago. Uma delas foi a mobilização do patrimônio histórico e cultural das diferentes regiões do país. Desta forma, pode-se afirmar que o patrimônio não representa um passado único, e sim uma multiplicidade de usos do passado. Este tipo de mobilização é corrente ainda hoje, com variadas finalidades.

O castelo Shuri (shurijō 首里城), antigo centro do poder de Ryūkyū tem sido intensamente mobilizado neste sentido (LOO, 2014, p. 75). Recentemente, um grande incêndio consumiu parte da estrutura, e a perda foi noticiada não somente dentro do Japão mas também teve intensa cobertura pela mídia internacional. No presente artigo, exploraremos os motivos pelos quais este acontecimento atraiu tanta atenção da mídia, bem como os esforços mobilizados para sua reconstrução, nas três diferentes escalas envolvidas.

O Castelo Shuri

Em 1866 Shō Tai (1843–1901), o último rei de Ryūkyū, era entronizado no castelo Shuri. Treze anos depois, em março de 1879, o rei deixaria o castelo com sua família, logo após abdicar formalmente do trono (AKAMINE, 2017, p. 151). Na ocasião da incorporação de Okinawa ao Japão, a saída do rei do castelo e seu confisco pelo governo japonês para ser utilizado como guarnição das tropas invasoras foi altamente simbólica, uma vez que historicamente a estrutura havia funcionado como um símbolo do poder da monarquia de Ryūkyū. 

Em 1925, o castelo foi designado como tesouro nacional (kokuhō 国宝) (LOO, 2014, p. 75). Este ato do governo central pode ser entendido como uma forma de tentar subsumir a cultura e identidade locais àquelas nacionais. O castelo Shuri se tornava, assim, um elemento da história japonesa. Além das escalas local e nacional, mais uma camada, a internacional, foi adicionada quando da designação da estrutura como Patrimônio Mundial pela UNESCO (LOO, 2014, p. 4-5). Agora o castelo passava a ser também um patrimônio da humanidade.

Enquanto patrimônio, o castelo Shuri tem um papel central na criação, manutenção, negociação e resistência com relação ao Japão. Discursos culturais envolvendo o castelo têm sido mobilizados de diferentes formas pelos diferentes atores envolvidos. Enquanto o Estado Japonês buscava usar o patrimônio cultural para disciplinar e subordinar o povo de Okinawa, este mobilizava o mesmo patrimônio para resistir a essas tentativas de controle e negociar sua própria posição.

O Incêndio e a Mídia

Como visto, o castelo Shuri é considerado um símbolo de identidade para o povo de Okinawa. No entanto, tal importância imbuída não impediu que tragédias acometessem esse espaço cultural e historicamente emblemático. Ao longo de quase 600 anos, o Castelo de Shuri enfrentou cinco incêndios. Um dos mais significativos destes em termos destrutivos ocorreu na Segunda Guerra Mundial, durante a Batalha de Okinawa em 1945, sendo destruído por completo (LOO, 2014, p. 149) e reconstruído somente em 1992, no local original, baseado em fotografias, registros históricos e plantas e outros documentos produzidos na ocasião da designação do local como tesouro nacional em 1925 (OKAHASHI, 2018, P. 3). 

Contudo, o que ocorreu em 30 de outubro de 2019 por vezes volta a aparecer na mídia, principalmente por causa das Olimpíadas de 2020. Na época, a polícia relatou que o Castelo estava sediando o festival voltado para a cultura do reino de Ryūkyū. Porém, o incêndio destruiu essa festividade e principalmente o pavilhão central do Castelo de Shuri, bem como edifícios próximos ao castelo. A mídia sinalizou informações muito precárias inicialmente, como sempre acontece nesses casos em que pouco se sabe dos pormenores: os bombeiros da cidade de Naha foram acionados e chegaram ao local às 2:40 horas da madrugada, além de enviarem caminhões tanque para o local; não se sabia se havia feridos também. 

À medida que as horas foram passando, um oficial do corpo de bombeiros relatou à imprensa local que o fogo foi notado pela empresa de segurança privada – da qual não se sabe o nome. Nesse entremeio, o incêndio se alastrou muito veloz e amplamente. Somente nove horas após a chegada dos bombeiros as flamas foram apagadas com um saldo de mais ou menos 4.000 metros danificados e um bombeiro ferido. 

Algumas figuras públicas se pronunciaram, todas em um tom de assombramento e ainda muito confusas. A título de exemplo, Mikiko Shiroma, prefeita de Naha, cidade em que o Castelo está localizado, deu uma declaração de que estava com o coração partido, devido à importância do Castelo Shuri. Masayuki Dana, diretor do Museu de Arte da Província de Okinawa e Professor da Okinawa International University, que fez parte da equipe que ajudou a reconstruir o castelo no último incêndio, explicou que na época muitos trabalhadores não sabiam mexer na estrutura, ou seja, técnicas arquitetônicas foram perdidas, e no momento que ele se depara novamente com a mesma situação, o sentimento sincópico volta à tona. Além disso, uma civil relatou seu apego mnemônico ao Castelo, dizendo passar por ele todos os dias, e que chegou a ver um estudante chorar. E ela se questiona: por que isso aconteceu? Mas para além disso, é importante se questionar: a partir dessa tragédia, como reconstruir não só o espaço físico, mas também o espaço afetivo? 

O Processo de Reconstrução

Após o incêndio, a Agência de Relações Culturais Japonesa reportou ao Centro de Patrimônio Mundial da UNESCO a respeito dos danos sofridos pelo complexo histórico, esclarecendo que o prejuízo causado pelo incidente incutiu em pouco impacto no valor geral das ruínas do Castelo Shuri original – localizado sob o pavilhão principal do castelo -, chegando ao percentual de 0,05% destruído da sua área total (FIRE, 2020). Embora o monumento já houvesse sofrido incêndios de menor proporção nos anos de 1660 e 1779 (ISHIDA, 2019), sendo também posteriormente reconstruído pela relevância histórica e cultural que o castelo carrega, o sentimento de perda causado pelo incidente recente não foi abrandado.

Não surpreendentemente, a comoção social dos Okinawanos diante do incidente levou à organização de um festival de quatro dias de duração a fim de arrecadar um montante suficiente para a reconstrução do castelo. O festival, que engajou a movimentação local com a música tradicional, paradas e trajes históricos, conseguiu arrecadar mais de cinco bilhões de ienes para a reconstrução do monumento, sob direção de projeto do Gabinete do Secretariado Geral de Okinawa. O processo de reconstrução tem seu início esperado para o ano de 2022, sob o slogan de “reconstrução em cartaz,” tendo em vista o planejamento na exibição das etapas da reconstrução (OKINAWA, 2020), da qual faz parte um projeto de recriar digitalmente um modelo do castelo com base em fotografias enviadas de forma voluntária por pessoas que visitaram o local antes do incêndio. Espelhando-se em projetos de reconstrução passados, como o completado no ano de 1992, tem-se o custo estimado de reconstrução do prédio principal, o seiden, em, aproximadamente, sete bilhões de ienes. As doações promovidas também pelo resto do país visam à obtenção de material para a reconstrução das partes danificadas do castelo, materiais tais como madeira e telhas de kawara vermelha.

Figura – Comunidade local em festival no Castelo de Shuri em outubro de 2020.

Fonte: The Japan Times

O desafio empreendido na reconstrução do patrimônio histórico será a elaboração de um projeto que também toque em questões essenciais para a sua preservação, tais como medidas de prevenção de incêndio, a serem elaboradas em conjunto com o governo nacional e a Fundação Churashima de Okinawa. Críticas também foram apontadas à resposta lenta e inadequada dos agentes de segurança frente ao ocorrido, apesar de terem sido descartadas hipóteses que envolvam atuação criminosa no incidente.

Portanto, a importância na preservação patrimonial está em reconhecer as questões e afetos evocados por ele, percebidos nas entrevistas feitas aos civis logo após ocorrido o incêndio em 2019. Levando-se em consideração não apenas o discurso oficial utilizado pelo Estado, como observado no caso do castelo Shuri onde o Estado japonês pós restauração Meiji atuou para fazer dele um símbolo representante da unicidade nacional ao decretá-lo tesouro da nação em 1925, mas, também nas relações com o povo de Okinawa que ressignificou o espaço fazendo dele símbolo de sua identidade e resistência cultural.

Foi essa mesma relação afetiva dos okinawanos que permitiu a rápida iniciação dos trâmites para a restauração, uma vez que através de sua rápida mobilização em torno da questão arrecadaram 5 dos 7 bilhões de ienes necessários para a reconstrução do castelo.

REFERÊNCIAS 

AIZAWATA, Yuko. Fire at World Heritage site Shuri Castle. Disponível em: https://www3.nhk.or.jp/nhkworld/en/news/backstories/735/ Acesso em: 10 de junho de 2021. 

AKAMINE, Mamoru. The Ryukyu Kingdom: cornerstone of East Asia. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2017.

FIRE at Okinawa’s Shuri Castle barely damaged original ruins. The Japan Times, 2020. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2020/01/31/national/shuri-castle-fire-minor-impact-universal-value-cultural-affairs-agency/. Acesso em 26 maio 2021.

HIRATA, Jun. Fire burns down structures at Japan’s historic Shuri Castle. Disponível em: https://www3.nhk.or.jp/nhkworld/en/news/backstories/735/. Acesso em: 5 de junho de 2021. 

ISHIDA, Masato. Shuri Castle fire highlights unique Okinawan history and identity. Nikkei Asia, 2019. Disponível em: https://asia.nikkei.com/Opinion/Shuri-Castle-fire-highlights-unique-Okinawan-history-and-identity. Acesso em 26 maio 2021.

LOO, Tze May. Heritage politics: Shuri Castle and Okinawa’s incorporation into modern Japan, 1879-2000. Lanham: Lexington Books, 2014.

OKAHASHI, Junko. Significance of reconstructed built-heritage after wartime destruction: Restitution of identity? New role in the subsequent society? In: ICOMOS 19th General Assembly and Scientific Symposium “Heritage and Democracy.” New Delhi, 2018.

OKINAWA marks anniversary of Shuri Castle fire as donations top ¥5 billion. The Japan Times, 2020. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2020/10/31/national/fire-donations-okinawa-shuri-castle/. Acesso em 26 maio 2021.

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