Por Dionson Ferreira Canova Júnior
João Victor de Melo Pontes
Maria Isabel do C. Soares
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior
Curadoria Assuntos do Japão
A Segunda Guerra Mundial no Japão: entre o cinema e a história
A representação de eventos históricos em diversas mídias nos permite enxergar alguns aspectos culturais do povo nele retratado. Assim, além de gerar entretenimento, um livro, um filme ou uma série sobre o passado de uma nação também nos permite entender de que modo esse povo compreende sua própria história. Obviamente, esses objetos culturais precisam ser contextualizados, afinal as visões sobre qualquer acontecimento são heterogêneas, mudando conforme a geração, as classes sociais, o gênero etc. Portanto, precisamos ter em mente que a perspectiva apresentada em uma obra artística é a defendida por seus autores ou responsáveis, e representa apenas uma parcela da sociedade.
Levando isso em conta, nós utilizaremos o filme “Vivendo com minha mãe” (Haha to Kuraseba) como ponto de partida para analisar características específicas da sociedade japonesa contemporânea. A obra retrata a cidade de Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial, desde a detonação da bomba nuclear até os três anos subsequentes, abordando o modo como as pessoas lidam com seu passado por meio do trauma. Única sobrevivente da família, Nobuko Fukuhara perdeu os seus dois filhos no conflito. Através dos ressentimentos e traumas oriundos desse momento conturbado, ela trava uma luta consigo mesma para aprender a lidar com estas mazelas, contando com a ajuda de seu filho Koji, que passa a visitá-la como espírito.

Para compreendermos como ocorre o processo de análise historiográfica de uma obra cinematográfica, vejamos o que William Meirelles diz:
Através do filme podemos observar nos seus personagens a distribuição dos papéis sociais e os esquemas culturais que identificam os seus lugares na sociedade. As lutas, reivindicações e desafios no enredo e os diversos grupos envolvidos nessas ações. O modo como aparece representada a organização social, as hierarquias e as relações sociais. Como são percebidos e mostrados pelos cineastas: lugares, fatos, eventos, tipos sociais, relações entre campo e cidade, rico e pobre, centro e periferia, etc. (MEIRELLES, 2004, p. 79).
Desse modo, podemos conhecer uma versão da visão que o Japão tem de si mesmo no período da guerra investigando a distribuição dos papéis sociais entre os personagens e o modo como eles representam as memórias latentes sobre a guerra e as fronteiras ainda tênues entre o passado e o presente. Em outras palavras, esse filme dramático pode demonstrar a visão do diretor sobre como o país ainda sintetiza e se relaciona com esse passado.
Ao revisitar um período traumático para o país, o filme nos convida a refletir sobre as políticas de memória e de transmissão do passado e suscita questionamentos sobre o quanto o presente ainda sente necessidade de encontrar meios para lidar com essa ferida. É importante mencionar que, enquanto Nobuko lamenta a situação atual e relembra, junto com seu filho, episódios de sua vida, nós percebemos que suas experiências com Koji e Machiko (ex-noiva do seu filho) conduzem as transformações da personagem e o modo como ela vai superar todas as incertezas do pós-guerra. Com isso, podemos entender que somente lidando com o passado e com os anseios do presente haverá superação.
Terra arrasada, acordos e esperanças: o surgimento da “fênix” nipônica
Com o Japão de joelhos após o final da Segunda Guerra Mundial, e o humilhante cenário de ocupação estabelecido pelos vitoriosos Aliados (e liderado pelos Estados Unidos), os japoneses se depararam com as severas consequências da inédita realidade de uma derrota em confrontos bélicos contra outras nações. Havia o fator humano, após as incontáveis baixas, sejam elas militares, em campo de batalha, ou civis, após os vários bombardeios, principalmente os nucleares; o econômico, com as atividades praticamente paralisadas; o estrutural, com cidades inteiras resumidas a escombros; e o não menos importante elemento emocional, com o imperador Hirohito (1901-1989) representando uma profunda melancolia ao pedir, em um pronunciamento nacional, para o seu povo “suportar o insuportável” (HENSHALL, 2016, p. 184).
Estas chagas provenientes da guerra se originaram da cegueira das forças armadas, dominadas por generais e almirantes ambiciosos, e da referida ocupação inimiga no Japão, que o obrigou a declarar a sua primeira derrota com um enorme e traumatizante pesar. Os anos de luta e de sentimento de superioridade desenfreados deixaram marcas de um percurso arriscado e ilógico.

A lembrança de Koji ouvindo Mendelssohn com Machiko representa a melancolia intensa vivida pelo personagem após a sua partida. Fonte: Vivendo Com a Minha Mãe (2015).
Dentro de um contexto tão delicado como esse, vemos no filme o elemento emocional sendo representado através do precipitado encerramento da existência de Koji. Esse evento dá origem ao sofrimento de Nobuko, que não se conforma com sua morte, especialmente porque o corpo não foi encontrado e, portanto, ela sequer chegou a fazer os rituais póstumos. Ela somente se convence da morte de Koji após três anos de seu desaparecimento e, quando se conforma, o espírito dele se manifesta em sua casa.
Entretanto, a narração da realidade por parte de Nobuko não basta para que o seu filho a entenda, tampouco para que haja a aceitação de que nada pode fazer em relação ao seu futuro. A forma abrupta e cruel com a qual se conclui a vida de Koji o perturba: o medo de se esvair por completo traz à tona o sentimento de angústia, e a alma corrompida por sua morte prematura – e de muitos de seus companheiros – carrega um tom melancólico até mesmo com as recordações mais felizes.
Por isso, o espírito de Koji busca conservar excessivamente aquilo que resta de si no mundo, depositando as suas esperanças de existir na promessa de um amor mal resolvido com a jovem Machiko, pois: “O amor se torna uma estratégia de sobrevivência. Onde se passa para o outro, onde se é o outro, onde se ama de modo a desfazer-se de si, a minha morte não está lá. Quem ama não morre, o medo desaparece […]” (HAN, 2020, p. 11, grifos do autor).
O desenvolvimento do personagem para o caminho da aceitação dos fatos acontece quando os diálogos entre ele e sua mãe trazem um tom de renúncia, sendo preciso sacrificar o apego por Machiko por algo maior que seu sentimento. Koji percebe que não deve lidar apenas com o sofrimento individual, mas também com a devastação e o vazio que transparece em todos os cantos da nação. É por meio da renúncia que se torna possível a libertação e a reedificação do espírito. Para dar um passo adiante, é preciso suportar a dor da perda dos entes queridos, a dor de não mais existir. Para se alcançar a paz, é preciso renegar a vitória e a felicidade.
Essa representação artística se fundamenta em um contexto histórico no qual era aparentemente improvável o surgimento de qualquer reação do Japão às mazelas impostas – muito menos de forma rápida. No entanto, o mundo pôde presenciar o povo japonês lançar mão de uma de suas características mais impressionantes: a capacidade de reconstrução sedimentada em um forte senso de coletividade e superação de obstáculos. Configurado como um “drama antiguerra” (LINDEN, 2016), o filme nos traz outras referências curiosas e inspiradoras sobre essa característica que os nipônicos constantemente expõem para o mundo, sempre que são postos à prova por variadas situações.[2]
Um exemplo está no personagem chamado “tio de Xangai”, um senhor de meia idade responsável pela venda ilegal de mercadorias de difícil acesso ou proibidas pelas forças de ocupação estadunidense. Em sua visão, “esta era a única forma de fornecer recursos para a população, pois os preços destes aumentavam a toda hora, devido à frágil economia no pós-guerra. Ele cobrava preços justos por seus produtos e muitas vezes os dava como presentes” (LIMA JÚNIOR, 2019, p. 481). De longe, o tio de Xangai é a representação mais interessante e significativa desse momento vivido pelos nipônicos, pois ele nos permite ver a rápida e contundente reação japonesa aos momentos de dificuldade.

Seja em personagens fictícios representados em obras de arte, como o tio de Xangai, Nobuko, seja em pessoas desconhecidas do dia a dia, vemos no povo japonês uma série de atitudes dignas da fênix grega, ser mitológico que, ao morrer, entrava em combustão e revivia das cinzas. Os japoneses, após passarem por variados e intensos contextos de total devastação, encontram forças uns nos outros, reerguem-se e refazem seu estilo de vida. A morte de Nobuko no filme e o acolhimento do seu espírito pelo filho é a simbolização máxima do aspecto da superação da morte.
Em constante sofrimento pelas perdas causadas durante as guerras, Nobuko finalmente descansa ao lidar com o dever cumprido com seus amigos e familiares e com a nação. E Koji, ao renunciar ao sentimento do amor por Machiko e desapegar de suas lembranças, atinge verdadeiramente a conclusão de sua vida e finaliza o movimento cíclico do sofrimento, dando lugar ao que está por vir. Sendo assim, percebemos que os nipônicos carregam dentro de si uma centelha da ave mitológica citada que, em caso de grande privação, revela toda sua potência e brilho.

A despedida de Nobuko e o acolhimento do seu espírito pelo filho. Fonte: Vivendo Com a Minha Mãe (2015).
REFERÊNCIAS
HAN, B. C. Morte e alteridade. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.
HENSHALL, K. G. História do Japão. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2016.
LIMA JÚNIOR, R. S. A cultura de superação e resiliência japonesa perante as adversidades através do filme “Vivendo com a Minha Mãe” (2015). In: BUENO, A.; ESTACHESKI, D.; CREMA, E.; SOUSA NETO, J. M. de. (org.). Extremo Oriente conectado. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. p. 475-483.
LINDEN, S. ‘Nagasaki: Memories of My Son’: Film Review. The Hollywood Reporter, 3 nov. 2016. Movie Reviews. Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/review/nagasaki-memories-my-son-944027. Acesso em: 14 abr. 2021.
MEIRELLES, W. R. O cinema na história. O uso do filme como recurso didático no ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 10, p. 77-88, out. 2004. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/11966. Acesso em: 15 abr. 2021.
SAKURAI, C. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2008.
SIMÕES, R. 10 anos de Fukushima: o dia em que o Japão foi atingido por terremoto, tsunami e acidente nuclear. BBC News Brasil, Londres, 10 mar. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55943220. Acesso em: 15 abr. 2021.
VIVENDO COM A MINHA MÃE. Direção: Yoji Yamada. 2015. 130 min., son., color., leg.
[1] Artigo in memoriam do historiador francês Marc Ferro (1924-2021), que revolucionou os estudos historiográficos ao utilizar o cinema como fonte. Vítima de complicações causadas pela COVID-19, ele deixa seu legado para as próximas gerações.
[2] Um exemplo recente dessa característica japonesa: em 11 de março de 2011, um maremoto próximo à cidade de Sendai gerou um tsunami que varreu a costa leste japonesa e provocou um acidente nuclear na usina de Fukushima. Na época, o evento mobilizou milhares de nipônicos a lutar para reerguer o país e oferecer ajuda humanitária às vítimas do desastre natural seguido de tragédia nuclear (SIMÕES, 2021).
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