Joyce Helena Ferreira da Silva
Pesquisadora-Associada do Instituto de Estudos da Ásia
Curadoria Política Industrial e Instituições
Um sistema econômico encontra legitimidade e capacidade de reprodução a partir da consolidação de uma superestrutura correspondente. Os objetivos de um modo de produção devem estar em conformidade com a subjetividade vigente; no sistema capitalista, a exploração e o mercado ocupam na centralidade nas relações sociais, mistificados como elementos “naturais”, próprios da condição humana. No socialismo, a completa emancipação do homem só será realizada a partir da reorganização de toda a estrutura social, desenvolvendo, neste processo, não apenas a destruição do modo de produção anterior, mas também erguendo uma nova mentalidade. O processo revolucionário não deve retroceder na tarefa de elevação da consciência das massas, sendo este mecanismo fundamental na consolidação de uma forma de existência completamente nova e superior.
Neste campo, a ideologia cumpre um papel primordial no avanço da mobilização da classe trabalhadora e no recorrente exercício de verificação da prática revolucionária à luz da teoria. Neste sentido, é fundamental o relacionamento dialético entre teoria e prática, tendo em vista que as condições materiais que se apresentam no decorrer das transformações revolucionárias podem ser substancialmente diferentes em experiências particulares. No entanto, não se deve confundir esta relação com a reabilitação da mentalidade capitalista. A dialética entre teoria e prática pode conduzir a um oportunismo de direita e de esquerda, desembocando em uma reestruturação capitalista ou em um socialismo fincado na areia movediça do revisionismo. Não se deve considerar que não existe possibilidade de desenvolvimento das forças produtivas fora dos mecanismos administrativo-organizacionais e da fronteira tecnológica capitalista.
Entretanto, por vezes, o confronto teoria-prática se reveste de um clamor revolucionário, com desavergonhadas alusões aos grandes líderes do passado, sendo, na verdade, um verniz para a aniquilação das condições de emancipação da classe trabalhadora. O oportunismo destas lideranças se apresenta na restauração das relações de produção capitalistas como sendo a única via de desenvolvimento das forças produtivas, na reintrodução de uma mentalidade individualista e competitiva, em consonância com um discurso de constante revisão das condições concretas à luz do marxismo-leninismo.
A República Popular Democrática da Coreia, vulgarmente conhecida como Coreia do Norte, é um país simbólico na solidificação de sua independência política e econômica, a despeito de todos os ataques, sanções e mentiras disseminadas sobre o país. Esta independência é possibilitada pela elevação da consciência das massas através do estabelecimento de uma mentalidade nova, que emerge junto com a sociedade socialista. Ainda que como uma leitura introdutória e com escopo reduzido, este artigo de opinião apresenta alguns dos elementos centrais da Ideia Juche, a partir do texto do líder Kim Jong Il (2016). A intenção é colocar a Coreia Popular em evidência de forma séria, fazendo o reconhecimento de sua força diante do imperialismo e seus ataques midiáticos e militares.
Países como Cuba, Venezuela e a própria Coreia Popular, a despeito de suas particularidades, são capazes de resistir às forças imperialistas a partir de uma aguda coesão interna, garantida por um aparato ideológico consistente e em conformidade com o desenvolvimento do aparelho produtivo. A centralidade da ideologia é perceptível na Ideia Juche:
A luta para transformar a humanidade está orientada a libertar as massas populares dos grilhões da velha mentalidade e caduca cultura e garantir-lhes condições ideológico-culturais para uma vida independente. Se os homens se emancipam por completo desses grilhões e possuem uma consciência ideológica independente e uma cultura sã, poderão forjar por si mesmos seu próprio destino e desenvolver uma vida e atividades dignas como seres humanos independentes (KIM JONG IL, 2016, p. 36).
A Ideia Juche tem como base analítica fundamental, como centro dinâmico, o homem. Segundo esta concepção, o homem é dotado de independência, espírito criador e com uma consciência. Tais seriam as propriedades do homem enquanto ser social. Por independência entende-se que a vida humana tem uma existência social, uma vida sócio-política e que o homem deve ser dono desta existência; a independência também se manifesta na intolerância a pressões ou interferências estrangeiras. O espírito criador reflete a capacidade de transformação da realidade. Consciência é a competência para conhecer o mundo e a legitimidade de sua evolução (KIM JONG IL, 2016, grifo nosso).
Dentre os princípios diretivos da Ideia Juche estão a manutenção da (i) posição independente na esfera ideológica (criação de uma cultura nacional e oposição à submissão diante das grandes potências), política (soberania e igualdade nas relações exteriores), econômica (buscar a autossuficiência técnica e recursos financeiros/centralidade na indústria pesada) e na defesa nacional (assegurar a superioridade político-ideológica do exército, formado pelos trabalhadores). A aplicação do (ii) método criador – apoiando o processo revolucionário na força e criatividade das massas, baseando-se nas condições históricas concretas e à situação de cada país (fatores internos políticos e ideológicos). Atenção primordial (iii) ao fator ideológico – este ponto é central na breve análise que tentamos desenrolar neste artigo de opinião, por isso, vamos nos debruçar mais atentamente sobre ele.
Nesta terceira diretriz, a Ideia Juche reafirma a relevância da modificação da mentalidade, pari passu com o desenvolvimento das forças produtivas, sendo o primeiro processo mais complexo do que o segundo.
[A formação ideológica] é uma tarefa mais difícil do que a de melhorar as condições da vida material dos homens ou a de elevar seu nível cultural-técnico. Sua consciência ideológica é restringida por sua situação socioeconômica e pelas condições de vida materiais, mas não se pode superá-las espontaneamente pela melhoria destas. As defasagens das velhas ideias são muito persistentes. A formação ideológica é uma tarefa complexa e duradoura, exige esforços intensos para alcançar o êxito (KIM JONG IL, 2016, p. 71, grifo nosso).
O quarto eixo orientador da Ideia Juche é (iv) priorizar o trabalho político. Aqui, se compreende a necessidade de amplificar o encorajamento político-moral da classe trabalhadora, em conformidade com os incentivos administrativo-prático e econômico-técnico. Este elemento deve ter prioridade, tendo em vista que a adoção de estímulos dados através, exclusivamente, de mecanismos monetários prejudicam o sistema e conduzem a comportamentos individualistas e competitivos entre trabalhadores. A educação e mobilização deve fluir das massas para as massas, fazendo com que “somente um eduque e mobilize a dez homens, estes dez a outros cem e estes cem a um milhar” (Ibidem, p. 77). Finalmente, temos o (v) significado histórico da Ideia Juche. O marxismo tem uma grande contribuição enquanto ciência, baseada no materialismo, por romper com a concepção idealista e metafísica do mundo. A Ideia Juche aparece como uma evolução do pensamento marxista, tendo aberto uma “etapa superior no desenvolvimento da teoria revolucionária da classe operária” (Ibidem, p. 81).
A ideologia cumpre um papel fundamental no capitalismo, o que desafia os novos modos de produção a reconstruírem suas sociedades em uma luta constante contra os resquícios do modelo anterior. É relevante observar os países socialistas, tidos como “enclaves”, resistentes às investidas imperialistas, não como anedotas das Relações Internacionais, mas como importantes polos de resistência e de coesão interna. Neste sentido, a construção de uma nova mentalidade possui centralidade e deve ser um projeto construído em paralelo aos avanços no campo das forças produtivas.
Referência
KING JONG IL, Sobre a Ideia Juche. 1ª Edição. São Paulo: Edições Nova Cultura, 2016.
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