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ARTIGO DE OPINIÃO | O Espelho e A Sombra

Por Amanda de Morais
Amanda Serafim
Camila Machado
Maria Gabriela Pedrosa
Rayane Sátiro
Suéllen Gentil

Curadoria Assuntos do Japão


Começar um texto não é uma das tarefas mais fáceis. Então, enquanto pensávamos numa maneira de introduzir aos leitores o assunto do tecno-orientalismo e o Japão, abordado nessas brevíssimas páginas, duas imagens pulularam em nossas mentes: o espelho e a sombra.

Em primeiro lugar, vamos ao espelho. As lendas nipônicas antigas falam sobre o yata no kagami , um espelho sagrado que faz parte do desfile de objetos sagrados da era imperial japonesa. O significado do espelho para essa tradição significa revelar a verdade, é o objeto do conhecimento. No entanto, se esse espelho está coberto de pó, significa que o conhecimento está sendo escondido. Essa imagem nos levou, por meio de caminhos sinuosos, ao vídeo de Chimamanda Ngozi Adichie: O perigo da história única. Quando esbarramos nessa fala da autora nigeriana, nos perguntamos qual a razão de sermos tão suscetíveis à história única de um povo. Chimamanda tem uma fala poderosa e cirúrgica quando diz que quando um povo é mostrado às pessoas como uma coisa só incontáveis vezes, ele se torna apenas isso.

Nesse sentido, a nossa intenção é mostrar ao leitor que o perigo da história única é o mesmo que a de um espelho encoberto de pó: não é que a história única crie mentiras, mas são incompletas, não revelam a verdade completa de um povo, ou seja, fomenta estereótipos. O tecno-orientalismo termo cunhado em 1995 por David Morley e Kevin Robins que, brevemente, significa um fenômeno que enxerga a tecnologia, avanços industriais e empresariais como condições essenciais da identidade japonesa e foi usado como um meio de criar estereótipos por certas estruturas de poder para contar a história do povo asiático, principalmente a do Japão.

O tecno-orientalismo dos anos 80 e 90 deixou marcas especialmente na cultura pop, com os filmes de ficção científica e a estética cyberpunk , criando a imagem da comunidade japonesa como seres desumanizados: uma mescla do corpo humano e da máquina. É daí que vem a imagem da sombra, pois é corrente a imagem do ser humano que vende a alma ao diabo. É sobre a perda da essência humana, e isto podemos notar em alguns filmes, músicas ou livros feitos por determinados artistas ocidentais: do povo japonês é retirado a sua sombra, o seu caráter humano, e a esse povo é dado apenas o direito de uma história única, um espelho coberto de pó.

No entanto, se essa narrativa única foi persistente durante décadas, os artistas japoneses tais como Masamune Shirow (pseudônimo de Masanari Ota), criador do mangá Ghost in the Shell, e, mais recentemente, Haro Aso, criador do mangá Alice in Borderland, por exemplo, foram gradualmente tomando as rédeas e iniciando rumorejos: e se o pó fosse retirado do espelho pelas nossas mãos? E se pudéssemos resgatar a nossa sombra? De forma que começamos a testemunhar, em diversas produções contemporâneas, esses criadores nipônicos retomando o conceito do tecno-orientalismo, porém, dando uma nova cor ao assunto.

O CONCEITO DE ORIENTALISMO

Para compreendermos o tecno-orientalismo, faz-se necessário conhecer o conceito que serviu como pano de fundo para seu surgimento: o Orientalismo. Este termo foi popularizado pelo intelectual palestino Edward Said, em 1978, através da publicação de seu livro Orientalismo: A Invenção do Oriente pelo Ocidente , que viria a ser sua obra mais importante, servindo de pilar para os estudos pós-coloniais.

Em sua análise, Said detalha como o discurso europeu do século XIX criou um lugar imaginário, chamado Oriente, para encaixar todos os países da parte leste do globo e estereotipá-los como bárbaros, exóticos e inferiores. Isso permitia que a Europa se colocasse no mundo como a cultura oposta, ou seja, civilizada e superior. Para sustentar seu argumento e comprovar a amplitude do orientalismo, Said não se deteve apenas na análise de discursos políticos, mas incluiu obras literárias e culturais, evidenciando que a criação de uma visão distorcida do “oriente” tinha relação direta com os interesses colonialistas europeus.

O quadro The Snake Charmer,1870, de Jean- Léon Gérôme foi capa do livro de Edward Said e se tornou referência sore o orientalismo em pinturas. Foto: Domínio Público.

As consequências catastróficas do orientalismo são visíveis até os dias atuais, onde grandes potências ainda se utilizam desse discurso para invadir um país ou promover xenofobia e racismo contra uma cultura. Em se tratando de Japão, a estereotipização europeia data desde a chegada dos primeiros europeus no arquipélago, em torno de 1543, e foi desde gente muito soberba e escandalosa até a representação de uma cultura violenta e ameaçadora. Como diria Chloe Gong em seu texto Techno-Orientalism in Science Fiction, o que o “ocidente” parece ignorar intencionalmente, muitas vezes é que a comunidade japonesa, assim como diversas outras sociedades estereotipadas pelo discurso hegemônico, vivem de forma muito parecida com qualquer outra população do planeta. Possui uma cultura plural e vasta que merece ser reconhecida por suas próprias lentes e seu próprio discurso.

TECNO-ORIENTALISMO: EXPRESSÕES DE UMA MODERNIDADE SELVAGEM

Tecno-orientalismo é um termo cunhado por David Morely e Kevin Robins em sua contribuição ao editorial Spaces of Identity: Global Media, Electronic Landscapes, and Cultural Boundaries (Routledge, 1995), e refere-se às representações orientalistas relacionadas ao Japão a partir da década de 80. É preciso, primeiramente, entender o contexto no qual os nipônicos estavam inseridos: no auge do “milagre japonês”. O Japão ocupado no pós-guerra de 1945 investiu pesadamente em tecnologia e educação visando a reestruturação de seu país devastado pela Guerra, as décadas de 80 e 90 viram os resultados deste esforço ao ascenderem como a 2º maior economia do mundo.

Por esta guinada no cenário político-econômico, alguns aspectos do orientalismo tradicional são deixados em segundo plano, tal como a centralidade na oposição ao “ocidente” que caracteriza o exotismo do povo “oriental”. O enfoque dá-se então à “singularidade japonesa”, transpassando para um cenário no qual a imagem predominante é focada na soberania técnica, porém guardando ainda conotações negativas.

A expansão em áreas como alimentação, comunicação e medicina começava a firmar novos traços da identidade japonesa na afirmação como Estado-nação. Então, o país passou a contrapor os ideais hegemônicos europeus e estadunidenses de civilização. Estas nações não viram a ascensão japonesa com bons olhos, mas sim, com certo receio; discutia-se como era possível tão acelerada industrialização e a resposta era somente uma: apenas tornou-se possível graças a unicidade nipônica.

Deste ponto em diante, estereótipos contraditórios representavam o Japão, principalmente nos EUA. Se de um lado tinha-se a simbologia cultural pré moderna de samurais e geishas, do outro havia o inegável reconhecimento de sua posição na contemporaneidade como precursor de avanços tecnológicos. O Japão passa a ser representado (principalmente em referências de cultura de massa) ambiguamente: de forma positiva, ao referenciar seu potencial intelectual, e de forma pejorativa, ao utilizar sua “herança oriental” como crítica e associação de seu povo às máquinas.

O USO DO TECNO-ORIENTALISMO COMO UM DIFUSOR DE ESTEREÓTIPOS E DISCRIMINAÇÃO

Na década de 80, o Japão passou a existir dentro do inconsciente político e cultural como uma figura de perigo, ao questionar os princípios da modernidade ocidental. Na concepção do Ocidente, o Japão deveria ser pré ou não moderno, nunca ultrapassando-o. Nesse sentido, as tecnologias se tornam cada vez mais estruturadas nos discursos racistas. Agora, as tecnologias passam a ser sinônimos da identidade e etnia japonesa. Essa associação cria estereótipos de uma cultura autoritária, fria e impessoal, semelhante a uma máquina. Como resultado disso, os japoneses são cada vez mais vistos como workaholics, perseguindo a todo custo um crescimento econômico sob a governança de um Japão Inc . Nesse sentido, o imaginário ocidental trabalha para consolidar velhas mistificações e estereótipos orientalistas: eles são bárbaros e nós somos civilizados, eles são robôs e nós permanecemos humanos.

Através dos meios de comunicação de massa — principalmente nas obras de ficção científica do gênero cyberpunk — que o conceito de tecno-orientalismo se torna bastante difundido. Nesse ponto, é preciso ressaltar que cyberpunk ocidental provavelmente não surgiu como uma reação direta ao techno-orientalismo, mas que certamente suas ideias se refletiram no gênero. Segundo Ursula K. Le Guin, a ficção científica não prevê o futuro, ela descreve a realidade. Logo, o reflexo dos temores da época estão presentes nessas obras.

Fonte : Captura de tela do jogo Cyberpunk 2077

Nas narrativas cyberpunk ocidentais, dois elementos com reflexos tecno-orientalistas se destacam: a cidade e o papel do antagonista. A paisagem urbana é formada por um conjunto de sinais orientalizados, que transmitem um aspecto visual de diversas capitais asiáticas como Hong Kong, Seul e Pequim, mas principalmente de Tokyo. A iconografia da cidade é marcada por enormes arranha-céus, letreiros neon com ideogramas, propagandas, aglomeração urbana, pobreza, multiculturalismo, alta tecnologia e distinção muito forte das classes sociais. São metrópoles descentralizadas, onde o indivíduo nunca se orienta. Para Lisa Nakamura, as narrativas cyberpunk com seus trabalhadores robóticos e conspirações sombrias, são uma versão de alta tecnologia do estereótipo racial com uma roupagem de ficção científica.

Outro elemento importante é o papel do antagonista, que é comumente apresentado de duas maneiras: o androide e as corporações. De acordo com Alexandra Young, em seu trabalho “More human than human”: Race, Culture and Identity in Cyberpunk”, os  andróides podem ser lidos como representações das mudanças tecnológicas e culturais, que despertam o nosso medo do desconhecido. Porém, a capacidade dos androides em parecer com os humanos, enfatiza a linha tênue entre o familiar e o desconhecido. Apesar de termos mais semelhanças do que diferenças, durante o desenvolvimento narrativo, somos constantemente lembrados da inferioridade e da falta de empatia dos androides. Para Young, os androides são uma analogia às minorias e ao preconceito racial. As grandes corporações, por outro lado, não possuem um rosto. São apenas conglomerados massivos, que buscam nas sombras dominarem tudo o que puderem e seus objetivos nunca são claros.

Sendo assim, é importante refletir sobre os tipos de discursos inseridos nas narrativas que consumimos, sejam essas narrativas em formato de produções culturais ou notícias veiculadas na mídia. É preciso pensar sobre o tipo de filtro que foi aplicado àquela narrativa que está sendo contada e a quais interesses ela atende, para não cairmos na armadilha de que um povo se resume a uma única história, quando, na verdade, há uma pluralidade de histórias, cultura e, principalmente, humanidade.

Referências

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