Artigos de opinião, Estudos Coreanos

ARTIGO DE OPINIÃO | As particularidades do soft power na experiência sul-coreana

Eloáh Ferreira Miguel Gomes da Costa

migueleloah@gmail.com

Imagem: BTS with President Moon Jae In | @bts_twt/Twitter

Após a Segunda Guerra Mundial, prevalecia a noção de que a força de um Estado estava ligada principalmente à sua capacidade militar e econômica, pois representavam a proteção e a possibilidade de imposição de seus interesses por meio de força ou ameaça e de concessões ou embargos econômicos (NYE, JR., 1990). No decorrer da Guerra Fria, novas formas de poder foram emergindo, em razão da evolução tecnológica e científica, do receio quanto às devastações de uma terceira guerra mundial, pelo desenvolvimento nuclear ao longo do globo, e das fronteiras físicas menos visíveis, com aumento da interdependência entre Estados.

O alcance do setor cultural, no sentido de determinar e difundir comportamentos e ideologias, é inegável, tanto que em regimes ditatoriais, no geral, há censura aos meios de comunicação e produção cultural, como uma forma de controle, os quais passam a ser utilizados em favor do próprio regime instaurado, como aconteceu na Ditadura Militar brasileira e no período ditatorial vivenciado pela Coreia do Sul a partir de 1961, sendo uma das novas formas de poder mencionadas, conceituada como soft power. O soft power consiste na habilidade de um Estado em levar outro a fazer o que lhe interessa, mediante atração, sem uso de coerção ou força (BARDEN, 2019, p. 01), sendo “através de suas iniciativas de proposição de agenda, ou ainda através de sua cultura e seus valores sociais, uma maneira quase inconsciente de um país ser persuadido em cooperar com outros” (CARRAZZONI, 2021, p. 21).

O conceito de soft power foi definido pelo cientista político estadunidense Joseph S. Nye Jr. em 1990, ao alertar os Estados Unidos da América (EUA) sobre a necessidade de buscar formas alternativas de poder (SERNAGIOTTO, 2022, p. 04), destacando a cultura popular estadunidense, que se apresentava “definidora de novas tendências e como o ápice da modernidade e inovação” (NYE, JR., 2004, p. 12). Destaca-se que na década de 1930, começou a ser difundido pelos EUA o American Way of Life, “uma mescla de propaganda e difusão dos próprios elementos culturais americanos, em que se propagava a música, o cinema e os demais produtos da cultura com a intenção de atingir diversas partes do globo” (CARRAZZONI, 2021, p. 21-22), como uma tática de projeção internacional, contudo sem a formação teórica e relevância construída no final do século XX.

Como se vê, a Coreia do Sul certamente não foi o primeiro país a exportar a sua cultura como uma ferramenta política. Ocorre que essas formas de poder alternativas foram ganhando destaque e formulação somente com as transformações ocorridas e consolidadas a partir da década de 1970, já mencionadas, levando a Coreia do Sul a ter uma experiência única enquanto empregadora do soft power, pois soube utilizar das ferramentas à sua disposição. Enquanto os EUA já ocupavam um papel determinante no cenário global quando da difusão do American Way of Life, que foi uma consequência, o país asiático começou com um projeto de investimento na indústria nacional, que estruturada passou a expandir o seu alcance, transformando a cultura sul-coreana em um produto comercial com capital político1.

Após a Guerra da Coreia (1950 – 1953), a Coreia do Sul, com auxílio financeiro dos EUA, passou por uma industrialização e crescimento econômico acelerados, a partir de uma estratégia protecionista do governo ditatorial, formando os grandes conglomerados empresariais familiares, os chaebols. Entretanto, com a pressão externa e interna pela democratização, o país entrou em crise ao abrir seu mercado e sistema financeiro e constatou que a sua relevância no cenário internacional, cercado pelo Japão e China e dependente militarmente dos EUA frente à Coreia do Norte, era inexpressiva, impossibilitando uma política externa forte e projeção de poder (SERNAGIOTTO, 2022, p. 06-07).

Dessa forma, na década de 1990, o país, que vivenciava o desestímulo de sua indústria nacional de bens culturais com a entrada de produtos culturais estrangeiros, passou a investir no setor de entretenimento, respondendo à crise econômica, inclusive com atração do capital dos chaebols para o setor, e buscando a projeção do país no exterior, que começou na China, com a formação do termo Hallyu, ou, traduzido para a língua portuguesa, “onda coreana”. A exportação cultural sul-coreana se iniciou com produções cinematográficas, na China e Japão, e se expandiu globalmente com a indústria musical (CARRAZZONI, 2021, p. 24-26), alcançando então a gastronomia, cosméticos, literatura, moda e jogos, com reflexos na economia e no turismo.

Outra particularidade desse processo é a forma que tomou o uso da internet e redes sociais como um suporte da expansão internacional, por ultrapassar barreiras físicas, facilitar a comunicação entre línguas distintas, inclusive com alfabetos diferentes, e proporcionar uma forma de relacionamento única entre os fãs e os artistas no centro do setor, com maior proximidade se comparado ao modelo ocidental do mainstream, promovendo a criação de fandoms que tomaram para si parte do papel de divulgar produtos culturais sul-coreanos, para além da música, a partir da internet, não sendo meros receptores, mas também operadores dessa disseminação.

Além disso, tem-se o uso de elementos pontuais de outra cultura, o que proporciona ao receptor uma identificação inicial (CARRAZZONI, 2021, p. 27), como a inserção de termos em inglês nas letras de músicas. Também, a apresentação, tanto da musicalidade quanto da imagem, somada à dança, conferem ao k-pop uma identidade própria que atrai e mantém o ouvinte, em conjunto com a capacidade tecnológica sul-coreana, aplicada ao setor de entretenimento e contribuindo para fazer das produções culturais nacionais uma commodity, que traz retornos econômicos, reconhecidos pelos grandes chaebols, os quais buscam formar parcerias com os artistas, como no caso da Samsung com o BTS em 2020, e retornos políticos, como na apresentação do grupo Red Velvet e da cantora Baek Ji-young em Pyongyang para homenagear a cúpula entre Coreia do Sul e Coreia do Norte no ano de 2018 (GIBSON, 2020); na visita do BTS à Casa Branca em 2022, para discutir a onda de violência contra pessoas amarelas nos EUA; e frequentes envolvimentos do BTS com ações da Organização das Nações Unidas (ONU).

Foto: Twitter @bts_bighit

Assim, a Coreia do Sul recorreu ao soft power como uma forma de alcançar projeção política no cenário global, o que por si só é uma particularidade do processo, pois até então não havia o destaque para a necessidade de se investir em outros instrumentos de poder, apesar de a cultura já ser usada como uma ferramenta de influência, o que, somado ao uso do desenvolvimento tecnológico alcançado pelo país asiático no setor de entretenimento e à forma de utilização da internet e redes sociais, faz da experiência sul-coreana um fenômeno que demanda atenção e estudo, pois, ao contrário de outros casos, foi capaz de efetivamente se inserir no mainstream, ainda que não o tenha rompido, e de transformar a sua produção cultural em capital político.


NOTAS DE RODAPÉ

1Ressalta-se que o surgimento de formas alternativas de poder não descaracteriza o papel das demais, ainda que tradicionais, visto que cada uma tem o seu papel na formação da capacidade de atração, e de imposição de interesses, de cada país.


REFERÊNCIAS

BARDEN, James. A Superpower Between Superpowers: How Post-Cold War South Korea Leveraged Pop Culture Into Soft Power. 2019. Dissertação (Mestrado em Artes Liberais) – Harvard Extension School, Harvard University, Cambridge. Disponível em: http://nrs.harvard.edu/urn-3:HUL.InstRepos:42004231. Acesso em:
21 abr. 2023.

CARRAZZONI, Nathaly de Andrade. O k-Way Of Life: a Expansão Global da Coreia do Sul pela Via do Soft Power. 2021. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Relações Internacionais) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/242076. Acesso em: 21 abr. 2023.

GIBSON, Jenna. How South Korean Pop Culture Can Be a Source of Soft Power. Carnegie Endowment For International Peace, Washington, 15 dez. 2020. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2020/12/15/how-south-korean popculture-can-be-source-of-s oft-power-pub-83411. Acesso em: 29 abr. 2023.

NYE, JR., Joseph S. Bound to lead: the changing nature of American power. Basic Books – Perseus Books, L. L. C.: Nova York, 1990.

NYE, JR., Joseph S. Soft power: The Means to Success in World Politics. PublicAffairs: Nova York, 2004. Disponível em: https://www.academia.edu/28699788/Soft_Power_the_Means_to_Success_in_World_Politics_Joseph_S_Nye_Jr. Acesso em: 23 abr. 2023.

SERNAGIOTTO, Felipe Azevedo. O fenômeno Hallyu: a cultura sul-coreana como instrumento de soft power no século XXI. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Relações Internacionais) – Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Universidade Federal de São Paulo, Osasco. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/62889. Acesso em: 23 abr. 2023.


APRESENTAÇÃO

Eloáh Ferreira Miguel Gomes da Costa

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Estadual Paulista e pós graduanda internacional em Compliance pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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