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ARTIGO DE OPINIÃO | A produção acadêmica sobre racismo, negritude e xenofobia, e apontar que esse é um campo que ainda pode ser muito explorado

Escrita:
Rayane Sátiro (satirorayane9@gmail.com)
Revisão:
Suéllen Gentil
Camila Machado
Thiago Henrique (Th24345@gmail.com)

Dentro do espaço acadêmico brasileiro, é possível afirmar que não há um grande número de artigos, livros ou capítulos de livros sobre a relação Japão e negritude. Nota-se com facilidade que este é um campo que ainda tem muito a ser explorado e pode ser frutífero para pesquisadores que se interessem por ele, portanto, neste texto serão abordados alguns dos artigos encontrados, numa revisão bibliográfica de textos que abordam a pessoa negra no Japão e outros debates acerca do tópico raça e etnia no Japão.

O antropólogo Hiroshi Wagatsuma é autor do texto The Social Perception of Skin Color in Japan, publicado na revista Daedalus, em 1967. Seu artigo debate a questão da cor da pele no Japão, e pode ser um bom contexto para entender o ambiente social nipônico, evitando projetar o contexto ocidental num país de cultura diversa. O autor afirma que antes mesmo de qualquer contato com povos europeus, no período Nara (710 d.C. — 793 d.C.), um tom de pele mais claro era considerado, por vezes, mais bonito e mais atraente, enquanto uma pele mais escura podia ser vista como indesejável, principalmente por estar atrelada à classe mais baixa, que tinha a pele mais escura por trabalhar ao sol, entre outros motivos.

Esse entendimento de brancura sofre um choque com o primeiro contato com europeus, momento no qual os povos asiáticos passam a ser vistos como “amarelos”. Entretanto, a pele mais escura continua a ser vista de forma negativa, na maioria das vezes, agora por influência também do entendimento de raças do povo europeu (WAGATSUMA, 1967). Afinal, como explica Monsma, ao referenciar Peter Wade (1997), o mundo, de certa forma, se “racializa” a medida que tem contato com a Europa:

Wade afirma que as diferenças físicas que percebemos como relevantes para a classificação racial são aqueles que diferenciam os europeus dos vários povos por eles conquistados, subjugados ou colonizados desde o início da expansão imperial da Europa no século XV. Ou seja, a racialização do mundo e o racismo são produtos do colonialismo e do imperialismo da Europa e das “novas Europas”, ou colônias de assentamento (MONSMA, 2013, p. 3-4).

No artigo Images of black people in late mediaeval and early modern Japan 1543–1900, de Gary P. Leupp (1995), o autor traz um apanhado histórico sobre as imagens de pessoas negras no Japão, iniciando ao falar sobre os primeiros contatos entre a comunidade nipônica e as pessoas africanas, que se deu por meio dos navegadores europeus que chegaram ao Japão com pessoas escravizadas e, ainda assim, não era muito comum. Para Leupp: “À medida que as elites japonesas, em parte por necessidade, buscavam inspiração na Europa e na América, elementos do racismo ocidental influenciaram não apenas suas opiniões sobre os africanos, mas também sobre vários outros povos não ocidentais.” (LEUPP, 1995, p. 2, tradução nossa1).

Nina Cornyetz é autora do ensaio Fetishized Blackness: Hip Hop and Racial Desire in Contemporary Japan (1994), no qual ela aborda o consumo do Hip Hop no Japão. Sendo um estilo nascido entre a comunidade negra e, inicialmente, para a comunidade negra, sua difusão para outros países e culturas levantou curiosidade, e para, Cornyetz, a apreciação do Hip Hop por alguns jovens japoneses passou também por uma questão fetichizada, mas foi, acima de tudo, uma problemática multifacetada, muito diferente do consumo por jovens brancos estadunidenses, mas deveras comercial.

Koichi Iwabuchi e Yasuko Takezawa são coautores do artigo Rethinking Race and Racism in and from Japan (2015). Não apenas neste artigo, mas em vários outros que se dedicam a estudar “raça” no Japão, vê-se um debate maior sobre como a categoria raça é pensada no contexto nipônico, sendo um entendimento diferente do que o que se tem no ocidente, de que asiáticos constituem uma única raça. No Japão, o senso comum entende algumas etnias e povos como pertencentes a uma raça diferente, entre eles os coreanos, e diversos artigos se dedicam a debater esta problemática. Os autores afirmam que:

Tem havido uma forte tendência a dissociar as questões que envolvem a discriminação do fenômeno do racismo; portanto, a discriminação contra os coreanos étnicos é chamada de ‘discriminação étnica’ (minzoku sabetsu), e a discriminação contra os burakumin, chamada de ‘discriminação buraku’. No entanto, esses grupos são, na verdade, racializados por discursos sociais que os veem como tendo diferenças internas inatas em termos de seus corpos, habilidades e temperamento. (IWABUCHI; TAKEZAWA, 2015, p. 2, tradução nossa2)

Outro artigo que investiga raça no Japão é The Struggle Against Hate Groups in Japan: The Invisible Civil Society, Leftist Elites and Anti-Racism Groups, de Daiki Shibuichi (2016), no qual é discutida a ação de grupos anti-racismo no Japão, como funcionam, como se formam e como agem, ou, melhor, como reagem, dado que muitos começaram a partir da indignação causada por atividades de grupos racistas.

Richard Siddle, em Race, ethnicity, and minorities in modern Japan (2011), com um debate similar aos artigos anteriores que tratam sobre “raça” no Japão, traz, no entanto, algo que está nas entrelinhas do trabalho de Nina Cornyetz (1994): o contato da comunidade nipônica com a cultura e o povo negro ainda se dá majoritariamente por meio da mídia ocidental, principalmente estadunidense, que diversas vezes reproduz pessoas negras como extremamente sexuais ou/e perigosas, envolvidas com ações criminosas. Apesar da globalização e do turismo, a presença de pessoas negras em solo japonês ainda não é muito comum, principalmente em cidades mais rurais, menos turísticas, ao contrário de Tóquio. Siddle afirma:

Os negros no Japão, de origem americana e africana, têm que lidar com representações depreciativas na cultura popular e na mídia, bem como em obras literárias mais sérias, devido em grande parte à absorção japonesa de estereótipos anglo-americanos racistas (SIDDLE, 2011, p. 160, tradução nossa3).

Já o artigo The History of Black Studies in Japan: Origin and Development, assinado por Tsunehiko Kato (2013), traz um apanhado histórico dos estudos sobre negritude no Japão, que se iniciou nas primeiras décadas do século XX. Em 1954, foi fundado o Japan Black Studies Association (JBSA) — Associação de Estudos Negros no Japão — que estimulou o estudo sobre negritude e, a partir dos anos 1980, alimenta também o interesse na produção literária de mulheres negras. Desde então, a JBSA continua em atividade e promove estudos, seminários e eventos sobre negritude, por vezes atrelando os temas à globalização e à vivência negra dentro da própria Ásia.

Em seu artigo nomeado Anti-Asian racism, Black Lives Matter, and COVID-19 (2020), Jennifer Ho fala sobre os casos de violência verbal e física sofridos por pessoas chinesas, mas também outras pessoas do leste asiáticos, como coreanos e japoneses durante o pico dos casos de racismo em 2020, que tiveram como agentes pessoas que culpavam os chineses pela existência da COVID-19. Para a autora, o racismo contra pessoas asiáticas e o racismo contra pessoas negras, é, evidentemente, um mesmo racismo, e a forma de combater esse racismo é a união de pessoas negras e pessoas asiáticas contra a supremacia branca.

Outro ponto da autora, uma inspiração para essa união, que ela acredita ser essencial entre pessoas negras e asiáticas, contra o racismo é Yuri Kochiyama4, nascida na Califórnia, que se tornou uma militante ativa pouco depois de seu tempo presa em Jerome, Arkansas durante a Segunda Guerra Mundial5. A partir desse ponto, ela se envolveu na luta contra o racismo e diversos outros temas, se aliando com outros ativistas, dentre eles o próprio Malcolm X, um ícone da luta negra nos Estados Unidos cujas ideias inspiraram o Movimento Black Power. A amizade dos dois durou até o assassinato de Malcolm X, no dia 21 de fevereiro de 1965, momento registrado na revista Life, numa foto na qual Yuri aparece segurando sua cabeça, ao tentar ajudar a prestar socorros.

Figura 2 — Artigo da Revista Life intitulado “A Morte de Malcolm X”, de 5 de março de 1965.

Reprodução: Artigo da Revista Life

Para Ho, Yuri Kochiyama é uma inspiração pois o trabalho dela como uma ativista construiu pontes entre várias comunidades, principalmente no tocante à solidariedade entre negros e asiaticos estadunidenses. Jennifer Ho conclui seu artigo colocando algo que pode ser aplicado universalmente: ela afirma que apesar de suas extensas pesquisas sobre a comunidade asiática dentro e fora dos EUA, ela ainda comete erros como uma educadora anti-racista, mas que ser anti-racista é um exercício contínuo, que não é fácil, todavia, depende apenas da escolha de cada um pois é algo aberto e disponível a todos nós. Como ela afirma, é preciso educar-se sobre raça e racismo, dentro e fora da localidade individual, para então falar e agir. Nas palavras da pesquisadora: “Eu não posso deixar de falar contra o racismo – espero que você também não possa. Porque o anti-racismo exige que todos nós estejamos juntos nisso”6 (HO, 2020, p. 8, tradução nossa).

Conclui-se, portanto, este estudo cuja intenção foi debater raça, etnia e, principalmente, negritude no Japão, tanto por via dos relatos de experiências de visitantes e moradores em solo japonês, quanto apresentando brevemente a produção acadêmica dentro da área, de forma a construir uma ideia mais completa sobre o tema. Fica claro, portanto, que este campo de estudo ainda é um tanto quanto escasso, todavia, pode ainda servir para muitos novos debates, artigos e pesquisas, e espera-se que o leitor que conclui a leitura sinta-se instigado a aprofundar a pesquisa.


NOTAS DE RODAPÉ:

1 “As Japanese elites, partly through necessity, came to look to Europe and America for inspiration, elements of Western racism not only influenced their views of Africans, but of various other non-Western peoples as well.”

2 “There has been a strong tendency to dissociate issues surrounding discrimination from the phenomenon of racism; hence discrimination against ethnic Koreans is called ‘ethnic discrimination’ (minzoku sabetsu), and discrimination against Burakumin called ‘buraku discrimination.’ However, these groups are actually racialized by social discourses that see them as having inborn internal differences in terms of their bodies, abilities, and temperament.”

3 “Blacks in Japan, of both American and African origin, have to contend with derogatory depictions in popular culture and the media, as well as in more serious literary works, due in large part to Japanese absorption of racist Anglo-American stereotypes.”

4 Para quem deseja saber mais sobre a vida de Yuri Kochiyama, recomenda-se a biografia “Heartbeat of Struggle: The Revolutionary Life of Yuri Kochiyama”, escrita pela pesquisadora Diane C. Fujino.

5 Kochiyama e seus pais foram alguns dos aproximadamente 120 mil cidadãos nipo-americanos aprisionados em campos de concentração nos anos 1940 nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, por ordem do então presidente Franklin D. Roosevelt. Em 1988, o presidente Ronald Reagan indenizou todos os sobreviventes dos campos em 20 mil dólares, graças à luta de militantes como a própria Yuri Kochiyama.

6 “I can’t not speak out against racism – I hope you can’t either. Because anti-racism requires all of us to be in this together.“


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORNYETZ, Nina. Fetishized Blackness: Hip Hop and Racial Desire in Contemporary Japan. Social Text, Durham, n. 41, p. 113-139, jan./mar. 1994.

HO, Jennifer. Anti-Asian racism, Black Lives Matter, and COVID-19. Japan Forum, Londres, v. 33, n. 1, p. 148-159, jan./mar. 2021. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/09555803.2020.1821749. Acesso em: 12 fev. 2022.

IWABUCHI, Koichi; TAKEZAWA, Yasuko. Rethinking Race and Racism in and from Japan. Japanese Studies, [s. l.], v. 35, n. 1, p. 1-3, jul. 2015.

KATO, Tsunehiko. The History of Black Studies in Japan: Origin and Development. Journal of Black Studies, Thousand Oaks, v. 44, n. 8, p. 829–845, jan. 2013.

LEUPP, Gary. Images of black people in late medieval and early modern Japan 1543–1900. Japan Forum, Londres, v. 7, n. 1, p. 1-13, abr. 1995.

MONSMA, Karl. Racialização, racismo e mudança: um ensaio teórico, com exemplos do pós-abolição paulista. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2013, Natal, Anais […], Natal, 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364748564_ARQUIVO_Mo
nsmatrabalho.pdf. Acesso em: 15 dez. 2021.

SHIBUICHI, Daiki. The Struggle Against Hate Groups in Japan: The Invisible Civil Society, Leftist Elites and Anti-Racism Groups. Social Science Japan Journal, Tóquio, v. 19, n. 1, p. 71–83, abr. 2016.

SIDDLE, Richard. Race, ethnicity, and minorities in modern Japan. In: VICTORIA, Lyon; BESTOR, Theodore; YAMAGATA, Akiko (org.). Routledge Handbook of Japanese Culture and Society. Abingdon: Routledge, 2011. cap. 12, p. 150-162.

WAGATSUMA, Hiroshi. The Social Perception of Skin Color in Japan. Daedalus, Massachusetts, v. 96, n. 2, p. 407-443, mar./jun. 1967

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