Escrita:
Thiago Henrique (Th24345@gmail.com)
Revisão:
Suéllen Gentil (suellen.gentil@gmail.com)
Camila Machado
Rayane Sátiro (satirorayane9@gmail.com)
Quando pensamos no universo dos animes japoneses, em geral, é evidente a baixa representação de personagens pretos. Quando há essa representação, são atrelados a tais personagens características caricaturais acerca do corpo preto, como lábios grandes e grossos, um tom de pele excessivamente escuro e traços psicológicos e físicos que fazem referência a loucura ou a psicopatia. Além do mais, conforme Anne Lei (2018), muitos desses personagens não têm um peso narrativo e possuem presença secundária nas obras, enquanto personagens de pele clara são os protagonistas ou possuem um papel significativamente mais importante. Por qual razão isso acontece?
Se essa pergunta for direcionada a uma parcela dos fãs de animes brasileiros, eles podem responder coisas do tipo: “[…] Normalmente, para criar um personagem, nos inspiramos no que vemos à nossa volta, em nosso dia-a-dia. (…) Os animes não são racistas, os japoneses são brancos, e há pouquíssimos negros no Japão”. Ou ainda: “[…] Mas a maioria dos animes é ambientada no Japão e a etnia negra está ausente naquele país. As HQs, filmes, livros e jogos deveriam sim aumentar a representação negra, mas o caso dos animes é muito particular”1.
Há uma lógica por trás desse tipo de pensamento – por mais preconceituosa que ele possa ser –, isso, claro, quando é levado em consideração o Nihonjinron e o mito da homogeneidade étnica no Japão. Segundo Elisa Sasaki (2011), o Nihonjinron seria um “gênero literário e acadêmico” que pontua e reflete sobre características da sociedade nipônica que tornam a sua identidade nacional algo singular, sendo possuidora de aspectos como a conformidade, a harmonia e organização grupal, a dependência mútua e a homogeneidade, se contrapondo, assim, às demais civilizações, especialmente as ocidentais. Ainda em conformidade com a autora, esse tipo de pensamento e argumentação também foi uma reação às consequências da Segunda Guerra Mundial, numa tentativa de evitar ou esquecer essa realidade que perpetrou a sociedade japonesa e a tornou inevitável a multietnicidade. Desse modo, criou-se e exportou-se o mito de que o Japão é um país etnicamente homogêneo, não havendo presença significativa de outros povos e culturas no arquipélago japonês, fato esse bastante questionado por John Lie: “[…] A historiografia nacionalista e a imaginação nacionalista impõem uma visão do Japão que tem sido monoétnica desde o início até o presente. (…) A verdade é que o Japão sempre foi multiétnico” (LIE, 2001, p. 141, tradução nossa)2.
Além disso, como apontado por Juliana Sayuri em sua reportagem para o Tab Uol3, no Japão existem 127 milhões de habitantes, havendo em torno de 2,9 milhões de estrangeiros que moram no país. Desses, mais de 800 mil são chineses e quase 850 mil são sul coreanos e vietnamitas, não havendo, nesse censo, perguntas direcionadas para a cor e etnia das pessoas. Dessa forma, essa aparente homogeneidade apaga e relega ao esquecimento minorias étnicas que se fazem presentes nas ilhas e oculta o racismo e outras formas de discriminação e violência que acontecem cotidianamente na sociedade japonesa. É possível perceber essa realidade em diversos relatos de japoneses de descendência africana ou afro-americana que não se sentem acolhidos pela sociedade japonesa e são discriminados devido a sua origem preta.
Maica é uma japonesa, filha de uma mãe japonesa e um pai estadunidense. A mesma declara no vídeo “Life As Half Black Japanese High School Girl”4 que, mesmo possuindo nacionalidade nipônica e vivendo sua vida toda no Japão, nas raras ocasiões em que as pessoas se aproximam dela, perguntam acerca de sua nacionalidade. Sobre a escola, ela relata que seus colegas também perguntam sobre sua origem, mas que acontece algo diferente com os alunos de outros anos. Segundo a mesma: “[…] Mas eu tinha medo dos alunos de outras séries e dos adultos também. (…) Como somos de séries diferentes, nunca falei com eles, então eles só me julgavam pela minha aparência. Acho que eles têm medo de mim e dizem coisas como ‘Ela é perigosa’” (tradução nossa)5. Ela também diz que eles a chamam de Michael desde o elemental, uma vez que, quando o cantor Michael Jackson faleceu, sua morte foi noticiada nos jornais e seus colegas começaram a dizer que: “[…] você se parece com Michael Jackson e você é negra”(tradução nossa)6. A própria entrevistadora classificou essa ação como bullying.
Indagada se já foi discriminada publicamente por estranhos, ela se lembra de uma ocasião em particular:
[…] Eu estava a caminho do metrô depois que terminei de estudar, uma noite. Havia um idoso que estava bêbado, andando de bicicleta. E de repente ele veio até mim. (…) ele disse: ‘Os negros são uma merda’. Ele me xingou. E havia muitas pessoas ao redor do metrô, e ele ficava gritando para eles: ‘Cuidado com os negros’. E ninguém ajudou. Eles estavam apenas olhando para mim (tradução nossa).7
Alguns outros relatos de entrevistadas pelo canal Asian Boss8 também trazem considerações importantes sobre dificuldades sofridas por elas devido a sua cor. Indagada sobre qual os estereótipos que os japoneses possuem sobre pessoas pretas, uma das entrevistadas respondeu: “[…] talvez os japoneses vejam os negros como assustadores (…), especialmente o homem negro, e talvez as mulheres negras sejam agressivas ou muito ousadas ou muito expressivas”(tradução nossa)9. Uma outra entrevistada, que é originária de Nova York e vive há 11 anos no Japão diz o seguinte:
[…] Isto é um estereótipo que existe na América também, (…) as mulheres negras em particular são criaturas muito sexuais e que nós gostamos de fazer sexo, tipo, em qualquer lugar, eu acho. Não sei se vem do pornô, mas já fui seguida e tipo, sabe, acariciada na rua para, sabe, seguir alguém até um hotel ou coisas assim, ou (…) apenas talvez chegar e dizer ‘hey, (…) garotas negras gostam disso, certo? Tipo, você só quer dar uma rapidinha lá’ e eu fico tipo: o quê? não.(tradução nossa)10
Não é à toa que, após o assassinato de George Floyd, as manifestações do “Black Lives Matter” tenha tido adesão também no Japão, havendo em torno de 3,500 manifestantes somente em Tóquio. Consoante Juliana Sayuri (2020), houveram registros de manifestações em Tóquio, Niigata, Nagoya, Osaka e Quioto e seus manifestantes queriam, por meio desses protestos, se solidarizar com a morte brutal de George Floyd por um policial, além de “[…] pavimentar o caminho para discutir o racismo aqui no Japão”, como pontua Sierra Todd. Ademais, como declara Ayana Wise numa fala retirada da reportagem de Juliana Sayuri: “Marchamos para aumentar conscientização entre japoneses do que está acontecendo lá fora — e para acordá-los sobre o que acontece aqui dentro. Há muito tempo, há negros no Japão. Há japoneses negros nascidos no Japão. Nós existimos”.
Conforme Sierra Todd11: “[…] eu acho que o principal problema do racismo no Japão é que as pessoas não necessariamente percebem que é um problema”(tradução nossa)12. Essa opinião também é compartilhada por Kaji Takaoka: “[…] o Japão precisa trabalhar mais nisso porque eles ainda nem criminalizaram o discurso de ódio. Há muito racismo oculto aqui no Japão, então eu só queria trazer isso mais à tona no Japão”(tradução nossa)13.
Um caso bastante emblemático sobre o racismo no Japão ficou bastante explícito quando, em 1986, o ex primeiro-ministro japonês, Yasuhiro Nakasone disse: “[…] Como há negros, porto-riquenhos e mexicanos nos Estados Unidos, seu nível de inteligência é, em média, mais baixo”14. Essa fala reverberou bastante negativamente nos Estados Unidos na época, mas o mesmo não aconteceu no território japonês. Na contemporaneidade, um outro exemplo que demonstra como o racismo no Japão não é visto como um problema, ou, no mínimo, não é algo discutido, foi o vídeo produzido pela emissora japonesa NHK explicando o movimento Black Lives Matter para o público nipônico no auge das manifestações. Para Baye McNeil15, em uma reportagem feita pelo Infonet , o vídeo era um “comentário racista ofensivo”, uma vez que representava as pessoas pretas como saqueadores, ladrões e pobres enquanto representava pessoas brancas como ricas e luxuosas. Ainda conforme a reportagem do Infonet, a própria embaixada dos Estados Unidos chamou a publicidade de “ofensiva e insensível”. O NHK retirou o vídeo do ar pouco tempo após a sua publicação em decorrência dessas críticas.
Apesar de ser um campo ainda pouco explorado, a intenção deste breve estudo foi abordar a negritude no Japão pelo olhar das mais variadas pessoas que contam quais foram suas experiências no solo japonês. Na segunda parte deste texto, que será publicada em breve, traremos breves resumos sobre a produção acadêmica dentro da área, de forma a tentar ter uma visão mais completa sobre os diversos debates acerca de raça, etnia, negritude e os japoneses.
NOTAS DE RODAPÉ:
1 A ausência de negros em animes e séries. Blogueiras negras, 26 de set. de 2013. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/ausencia-de-negros-em-animes/. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
2 “[…] Nationalist historiography and the nationalist imagination impose a vision of Japan that has been monoethnic from the beginning to the present. (…) The truth of the matter is that Japan has always been multiethnic”.
3 Japoneses negros: jovens desmontam mito de modelo étnico único no Japão. Tab Uol, 07 de jul. de 2020. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/07/japoneses-negros-jovens desmontam-mito-de-modelo-etnico-unico-no-japao.htm. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
4 Life As Half Black Half Japanese High School Girl. THE VOICELESS #18. Asian Boss, 31 de ago. de 2019. 1 vídeo (13,4 min). Publicado por Asian Boss. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7hXTPHrcs9Y&t=291s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
5 “[…] But I was scared of the students from other grades and the adults as well. (…) Since we’re in different grades, I never spoke to them, so they’d just judge me by my looks. I think they’re scared of me and say stuff like ‘She’s dangerous’.”
6 “[…] you look like Michael Jackson and you’re black”.
7 […] I was on my way to the subway after I finished studying one night. There was an old man who was drunk, riding a bicycle. And he suddenly came up to me. (…) he said, ‘Black people are shit’. He swore at me. And there were many people around the subway, and he kept shouting at them, ‘Be careful of black people’. And nobody helped. They were just staring at me.
8 What’s It Like Being Black In Japan in 2021? Street Interview. Asian Boss, 24 de mai. de 2021. 1 vídeo (21 min). Publicado por Asian Boss. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GajrIc83ZUw&t=620s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
9 “[…] maybe japanese people see black people as like scary (…), especially black man, and maybe black women are aggressive or just too bold or too expressive”.
10 […] This is a sterotype in America too, (…) black women in particular are very sexual creatures and that we just like are okay with having sex like anywhere and everywhere, I guess. I don’t know if it comes from porn, but I’ve been followed and like, you know, caressed on the streets to, you know, follow somebody to a hotel or like things like that, or (…) they’ll just maybe walk up and say ‘hey, (…) black girls are into this, right? Like you just want to go quickie over there’ and I’m like: what? no.
11 The Black Lives Matter Movement Is Growing in Japan. Vice Asia, 17 de jun. de 2020. 1 vídeo (5,3 min). Publicado por Vice Asia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fmiyue2FHGY&t=156s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
12 “[…] I think the main problem regarding racism in Japan is that people don’t necessary realize that it’s a problem”.
13 “[…] Japan needs to step it up because right now they haven’t even criminalized hate speech. There’s a lot of hidden racism here in Japan, so I just wanted to maybe bring more to the forefront in Japan is well”.
14 Os problemas enfrentados pelo Japão por ter restringido de maneira dura a imigração. BBC, 14 de jul. de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48916176. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
15 Mudanças como o Black Lives Matter levam Japão a enfrentar o racismo. Infonet, 09 de set. de 2020. Disponível em: https://infonet.com.br/noticias/cidade/mudancas-como-o-black-lives-matter-levam-japao-a-enfrentar-o-racismo/. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
A ausência de negros em animes e séries. Blogueiras negras, 26 de set. de 2013. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/ausencia-de-negros-em-animes/. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
Japoneses negros: jovens desmontam mito de modelo étnico único no Japão. Tab Uol, 07 de jul. de 2020. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/07/japoneses-negros-jovens desmontam-mito-de-modelo-etnico-unico-no-japao.htm. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
LEI, Anne. Constructing Race in Anime. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Honors Baccalaureate of Science in Computer Science), Oregon State University,Oregon, 2018.
LIE, John. Multiethnic Japan. United States of America: Library of Congress Cataloging-in-Publication Data, 2001.
Life As Half Black Half Japanese High School Girl. THE VOICELESS #18. Asian Boss, 31 de ago. de 2019. 1 vídeo (13,4 min). Publicado por Asian Boss. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7hXTPHrcs9Y&t=291s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
Mudanças como o Black Lives Matter levam Japão a enfrentar o racismo. Infonet, 09 de set. de 2020. Disponível em: https://infonet.com.br/noticias/cidade/mudancas-como-o-black-lives-matter-leva m-japao-a-enfrentar-o-racismo/. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
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SASAKI, E. M. Nihonjinron – teorias da japonicidade. Estudos Japoneses, [S. l.], n. 31, p. 11-25, 2011. DOI: 10.11606/issn.2447-7125.v0i31p11-25. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ej/article/view/143039. Acesso em: 15 abr. 2022.
The Black Lives Matter Movement Is Growing in Japan. Vice Asia, 17 de jun. de 2020. 1 vídeo (5,3 min). Publicado por Vice Asia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fmiyue2FHGY&t=156s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
What’s It Like Being Black In Japan in 2021? Street Interview. Asian Boss, 24 de mai. de 2021. 1 vídeo (21 min). Publicado por Asian Boss. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GajrIc83ZUw&t=620s. Acesso em: 15 de abr. de 2022.
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