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ARTIGO DE OPINIÃO | O Legado de Shinzō Abe e os Efeitos de seu Assassinato para o Estado Japonês


Redação e análise crítica por:
Maurício Luiz Borges Ramos Dias
Thomas Dias Placido


Revisão especializada por:

João Pedro Grilo

Fonte: BBC, 2022.

“Shinzō Abe foi o líder japonês mais importante nos últimos 50 anos”, escreveu Kevin Rudd – ex-primeiro ministro australiano – para o The Economist. Sendo o primeiro-ministro japonês que mais tempo ficou no cargo na história contemporânea japonesa, Abe (2006-2007/2012-2020) também foi o primeiro premiê do Japão nascido após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), considerado como membro-chave dos novos conservadores da política nipônica (HARRIS, 2020). Nesse sentido, sabe-se que Abe procurou expandir o escopo de atuação da política externa japonesa, bem como sua estratégia de segurança nacional. Na conjuntura doméstica, o político ficou conhecido por buscar a reestruturação da economia estagnada há décadas, além de avançar na transformação da identidade nacional do Japão no pós-guerra.


Apesar do carisma, Shinzō Abe foi assassinado a tiros no dia 8 de julho, enquanto participava de um comício eleitoral para o Partido Liberal Democrata (PLD), partido governista japonês, na cidade de Nara, região central do Japão. Tetsuya Yamagami, autor do crime, disse que atirou em Abe por causa dos vínculos do ex-premiê com a Igreja da Unificação, conhecida como os “Moonies”, revelando novos laços profundos entre a política japonesa e os grupos religiosos. No presente artigo, iremos abordar um pouco do legado de Abe, assim como as implicações que o trágico ocorrido trazem para a política japonesa contemporânea.


Quando o assunto é Shinzō Abe, não se pode deixar de mencionar o seu papel, após seu retorno ao cargo de primeiro-ministro em dezembro de 2012, na aceleração do processo, ainda em curso, de renascimento militar do Japão. Almejando a criação de uma firme defesa nacional e, por vezes, contestando o tradicional pacifismo nipônico, Abe foi responsável, por exemplo, pela implementação da: 1) “Conferência dos Quatro Ministros” em 2013, que concentrou a capacidade de articulação direta de Abe em assuntos de defesa e política externa ao promover encontros entre o primeiro-ministro, o secretário-chefe de gabinete e os ministros da Defesa e Relações Exteriores (LIFF, 2018); 2) permissão à Assistência Oficial ao Desenvolvimento em financiar forças militares estrangeiras que estejam em missões pacíficas (YOSHIMATSU, 2021); 3) e atualizações acentuadas das Diretrizes Nacionais do Programa de Defesa em 2013 e 2018, possibilitando o incremento de equipamentos e novas estratégias militares domésticas e regionais (CARLETTI; DIAS, 2020).


Durante essa cadência de implementações, Abe conquistou um dos seus maiores logros na estratégia de remilitarização japonesa, sendo ela a reinterpretação parcial do artigo 9o da Constituição do Japão de 1947, no qual o país, ocupado pelas Forças Aliadas entre 1945 e 1952, abdicou de seu direito à livre beligerância. Nesse sentido, em decisão aprovada no ano de 2015, a Terra do Sol Nascente, antes somente habilitada a defender o seu território nacional, foi autorizada a atuar em conjunto com forças militares internacionais, sob o conceito de autodefesa coletiva, caso sua sobrevivência nacional estivesse em risco e/ou uma nação com relações próximas ao país fosse atacada.


Mas como o primeiro-ministro conseguiu avanços no âmbito da defesa nacional tão profundos? A resposta parcial se encontra frente a um contexto regional incerto, marcado pelo fortalecimento militar da China, testes nucleares e balísticos da Coreia do Norte e, a partir de 2017, da subida estadunidense de Donald Trump à Casa Branca, que promoveu uma sinergia da própria pré-disposição de desenvolvimento militar de Abe com os anseios da população e da elite japonesa na área de segurança doméstica (HUGHES, 2015; LIFF, 2015; NISHI, 2019). Em relação a Trump, o presidente estadunidense intensificava o sentimento de incerteza japonês de que o Estados Unidos iria, ou não, proteger o território japonês, caso fosse necessário.


No âmbito das estratégias regionais, ao longo do seu primeiro mandato, entre 2006-07, o Japão adquiriu um novo papel internacional sob a ótica da política “Arco da Liberdade e Prosperidade”, onde se estenderam as relações com nações parceiras e aumentou o alcance diplomático a outras regiões. Nessa perspectiva, em seu segundo mandato, destaca-se que Abe liderou a criação do conceito “IndoPacífico Livre e Aberto” (FOIP, na sigla em inglês) em 2016, caracterizando uma mudança significativa em contrapartida à postura anterior do Japão de defensor relativamente passivo da ordem internacional liberal liderada pelos Estados Unidos. Assim, com o lançamento dessa visão sob a administração de Abe, o Japão assumiu um papel mais proativo na construção e manutenção da ordem regional, adotando a
conceituação do Indo-Pacífico a fim de demarcar sua área primária de interesse estratégico, econômico e de segurança. Concomitantemente, entende-se que a Terra do Sol Nascente passou a fornecer um grau de liderança regional anteriormente considerado inesperado para avançar sua própria fórmula de estruturação de planos regionais.


O político também defendeu o Trans-Pacific Partnership (TPP), um acordo comercial amplo que ligava os EUA, o Japão e outras dez economias de mercado regionais – um feito notável, dada a tradição protecionista japonesa -, o Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD na sigla em inglês, que envolve Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos) e também lançou uma parceria econômica com o Asian Development Bank (tradicionalmente um instrumento de atuação japonês), em contrapartida aos avanços chineses com a Belt and Road Initiative (BRI) e do Asian Infraestructure Investment Bank (AIIB) – promovido pela China desde 2013.


Além disso, domesticamente, o Japão presenciou uma transformação no seu planejamento econômico a partir do final de 2012, sob o segundo mandato da administração de Abe, entre 2012-2020 (HOSHI; LIPSCY, 2021). Com o intuito de tirar o país de um longo período de estagnação e deflação, o governante procurou estabelecer as bases de sua nova estratégia econômica, chamada “Abenomics”, ancorada em três “flechas” principais: as duas primeiras (“política monetária expansionista” e “política fiscal flexível”) eram políticas macroeconômicas que buscavam aquecer a economia do Japão — almejando combater a deflação persistente há décadas — e a terceira (“estratégia de crescimento” para promover, por exemplo, o investimento privado) se firmou em reformas estruturais para aumentar a taxa de crescimento potencial do Japão (ITO; HOSHI, 2020).


Apesar de sua implementação, essas políticas econômicas foram muitas vezes vistas como impopulares pelo público doméstico e em grande parte não conseguiram estimular as taxas de crescimento que o político tanto buscava. Entretanto, destaca-se que sua vontade de tomar a dianteira em problemas estruturais, incluindo agricultura, indústria automobilística e de energia, contribuiu para sucessos significativos na arena internacional, como reformulação do TPP no chamado Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership (CPTPP) em 2017.


Também no âmbito doméstico, após seu retorno em 2012, Shinzō Abe, como representante da ala política conservadora japonesa, demonstrou o intrigante elo entre o governo e instituições nacionalistas xintoístas, como a Nippon Kaigi e a Shintō Seiji Renmei, no Japão contemporâneo. Com ambas as organizações, que defendem, por exemplo, a promoção da tradição nipônica e a revisão da Constituição, em especial, no que concerne às limitações militares, tendo possuído como filiados integrantes da Dieta e o próprio primeiro-ministro, estima-se que o governo Abe atuou em questões sensíveis em direção ao interesse desses grupos religiosos (DIAS; CARLETTI, 2020). Dentre elas, a inclinação de revisionismo histórico por parte de Abe ao contestar a veracidade da Declaração Kono de 1993, que reconheceu a participação do Japão Imperial na questão brutal das mulheres de conforto que foram violentadas sexualmente; a própria remilitarização japonesa; e a decisão do encontro do G7 em 2016 perpassar pelo templo de Ise, o espaço xintoísta mais sagrado do Japão.


Agora que parte do legado de Abe foi exposto, afinal, quais foram os reflexos do assassinato de Shinzō Abe para o Japão? De um lado, o atentado do dia 08 de julho de 2022 demonstrou que a capilaridade da interação japonesa entre Estado e Religião possui maiores ramificações, ao passo que Tetsuya Yamagami justificou o seu ataque perante a ligação entre Abe e a Igreja da Unificação, sendo essa última responsável por causar a falência de sua mãe que realizava doações abundantes a essa organização. Embora não tenha sido comprovado até o momento qual profundidade o ex-primeiro-ministro teve nessa interação, em setembro de 2021, Abe proferiu um discurso especial em evento organizado por essa Igreja e lhe agradeceu pelos seus trabalhos.


Ainda, é interessante notar que a Igreja da Unificação, inaugurada por Sun Myung Moon na Coreia do Sul em 1954, de caráter anti-comunista e conservadora, teve sua expansão no Japão apoiada pelo avô de Abe, o ex-primeiro-ministro Kishi Nobusuke (1957-1960), e demais políticos durante as décadas de 1960 e 1970. Com o passar dos anos, a Igreja da Unificação buscou promover valores orientados à sua própria concepção tradicionalista de família ideal. Na contemporaneidade, com 70% das doações a essa organização sendo originárias do Japão, o Ministro da Defesa Nobuo Kishi, irmão mais velho de Abe, admitiu que membros da Igreja da Unificação já realizam campanhas a seu favor. Demais políticos, de diversos espectros, também ressaltaram que receberam apoio dessa Igreja.

Portanto, sobre a relação entre Estado e Igreja da Unificação, devemos ficar atentos e investigar como essa ligação, seja ela formalizada, ou não, pode ter afetado e estar impulsionando o governo japonês a tomar decisões opostas à igualdade de gênero, diversidade sexual e respeito ao casamento entre pessoas do mesmo gênero, por exemplo.

Já ponderando sobre a morte de Abe e o campo político, é importante observar que seu assassinato contribuiu para que 13% dos eleitores entrevistados trocassem o partido em que anteriormente iriam votar, ocasionando um efeito leve, não uma enorme onda que reverteu novos apoiadores ao PLD nas eleições da Câmera Alta do dia 10 de julho. Entretanto, a coalizão entre o PLD e seus apoiadores conquistaram a maioria dos assentos, o que possibilitaria, em especial, aos partidos conservadores a sua tão sonhada revisão do artigo 9o da Constituição. Em uma espécie de corda bamba, políticos podem ensejar a busca pela revisão como forma de louvar e honrar o nome de Abe, enquanto o primeiro-ministro Fumio Kishida (2021-atualmente) tende a um posicionamento mais brando nessa questão para não desgastar o seu capital político e colocar em risco o seu apoio popular sem antes realizar uma consulta nacional.


Para além disso, o assassinato de Abe significou a morte do líder da maior “facção” do PLD, a Seiwa Seisaku Kenkyuukai (ou somente Seiwakai). As facções, que são coalizões institucionalizadas do partido governista, remontam à junção do Partido Liberal com o Democrático no pós-guerra, formalizada em 1955. Depreende-se que essas coalizões exercem o poder na reorganização do cenário político-governamental nipônico, ditando cargos do gabinete, dando apoio às eleições e decidindo sobre quem obtém um assento no parlamento (HARRIS, 2020). Consequentemente, uma vez que os chefes dessas facções se tornam primeiros-ministros, existe uma forte influência na política e agenda internacional por parte dessas alas, principalmente entre as do PLD. Mas qual o efeito quando o líder da principal facção é assassinado?


Perante esse vácuo de poder, mesmo com a mudança de oficiais no partido governista com o rearranjo ministerial no dia 10 de agosto, por ora, é pouco provável que a ausência de Abe afete a principal agenda política do partido. Todavia, de acordo com Michael Bosack, assessor especial no Yokosuka Council on Asia-Pacific Studies, não existe um precedente moderno relacionado ao acontecido, tornando difícil para qualquer um avaliar os verdadeiros efeitos do assassinato de Abe.


Logo, é necessário concentrar-se primeiro nas questões práticas que foram desencadeadas por seu falecimento. Com a vitória nas eleições da Câmara Alta do dia 10 de julho pelo PLD e a consequente escolha do segundo gabinete da administração de Fumio Kishida um mês depois, destaca-se que a influência de Shinzō Abe no substrato político japonês ainda é aparente, com 4 membros do novo gabinete pertencendo à antiga facção de Abe, agora sem líder. Com uma maioria na Câmara Alta, o partido conservador agarra a possibilidade de aprovar peças-chave da legislação, incluindo as reformas constitucionais, como a supracitada revisão do artigo 9o. Porém devemos analisar até que ponto o PLD julgará oportuno implementar decisões mais arriscadas devido à possível maior instabilidade da Seiwakai. Cabe destacar que, apesar da chance de ratificar tais emendas, a ação concreta ainda exigiria uma maioria de dois terços de votos na Câmara Baixa da Dieta, onde a coalizão conservadora entre o PLD e seu parceiro tradicional na Dieta, Komeitō – partido reconhecido por sua relação com o budismo -, não detém, atualmente, a maioria qualificada.

Diante do exposto, destaca-se que Shinzō Abe construiu um legado político complexo, estando marcado pela aceleração da remilitarização japonesa, em um país tradicionalmente reconhecido pelo seu pacifismo pós-Segunda Guerra Mundial, e por buscar novos arranjos regionais para uma ativa inserção internacional nipônica. Sincronicamente, Abe se esforçou para superar os desafios econômicos crônicos de seu país, assim como demonstrou as conexões de suas propostas com organizações xintoístas conservadoras na contemporaneidade.


Após o seu assassinato, novos caminhos a serem investigados surgiram, tais como verificar a ligação entre o Estado e a Igreja da Unificação. Entretanto, também tem-se receio de certa fragilidade do PLD sem a liderança de Abe na facção Seiwakai. Como reflexo desse acontecimento inesperado, diversas dúvidas surgem. Estaria o PLD mais próximo de revisar o artigo 9o? O partido conseguirá se manter unido? O primeiro-ministro Kishida, que não é integrante da Seiwakai, terá maior capacidade de manobra política partidária mediante uma possível maior instabilidade da maior facção do PLD? Cada vez mais ligações formais entre políticos e membros da Igreja da Unificação serão descobertas? Esses questionamentos, ainda, não tiveram seus desdobramentos desenvolvidos. Porém, acreditamos que uma última pergunta se faz necessária: estaria o Japão politicamente preparado para superar a ausência de Shinzō Abe?


REFERÊNCIAS

CARLETTI, Anna; DIAS, Maurício Luiz Borges Ramos Dias. A Política Externa de Shinzō Abe (2012-2019): uma nova orientação japonesa. Cadernos de Relações Internacionais e Defesa, Santana do Livramento, v. 2, n. 2, p. 23-43, 2020.


DIAS, Maurício Luiz Borges Ramos; CARLETTI, Anna. A INFLUÊNCIA DO XINTOÍSMO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO NACIONAL JAPONÊS. Revista de Estudos Internacionais (REI), João Pessoa, v. 11, n. 2, p. 3-19, 2020.


HARRIS, Tobias. The Iconoclast: Shinzo Abe and the New Japan. Londres: Hurst, 2020.


HOSHI, Takeo; LIPSCY, Phillip y. The Political Economy of the Abe Government and Abenomics Reforms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.


HUGHES, Christopher W. Japan’s Foreign and Security Policy Under the “Abe Doctrine”: New Dynamism or New Dead End? Nova York: Palgrave Macmillan, 2015.


ITO, Takatoshi; HOSHI, Takeo. The Japanese Economy: Second edition. 2. ed. Cambridge: MIT Press, 2020.


NISHI, Masanori. Policy Implications of Japan’s New NDPG. In: SCHOFF, James L.; ROMEI, Sayuri (Orgs.). The New Guidelines Defense Program Guidelines: Aligning U.S. and Japanese Defense Strategies for the Third Post ́Cold War Era.Washington: Sasakawa Peace Foundation USA, 2019, p.21-26.


LIFF, Adam P. Japan’s Defense Policy: Abe the Evolutionary. The Washington Quarterly, Washington, v. 38, n. 2, p. 79-99, 2015.


LIFF, Adam P. Japan’s National Security Council: Policy Coordination and Political Power. Japanese Studies, Sidney, v. 38, n. 2, 2018.


YOSHIMATSU, Hidetaka. Japan’s Asian Diplomacy: Power Transition, Domestic Politics, and Diffusion of Ideas. Singapura: Palgrave Macmillan, 2021.

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