ELIC | Curadoria de Assuntos do Japão
Redação: Sátiro e Thiago Henrique Oliveira Jardim
Revisão: Amanda de Morais, Camila Machado, Patrícia Milet, Suéllen Gentil
Com o intuito de se refletir a relação do Japão com a comunidade negra, vale relembrar um episódio emblemático ocorrido na Olimpíada de Tóquio 2020: a cerimônia para acender a pira olímpica. Em todas as olimpíadas, esse é um momento extremamente importante, não somente devido ao seu valor estético, ou por se ligar a uma tradição secular, mas, principalmente, por se tratar de uma oportunidade de transmissão da história, da simbologia e dos valores nacionais através das pessoas que carregam a tocha olímpica. No caso do Japão, entre as homenagens às vítimas da COVID-19 e aos profissionais de saúde (representados por um médico e uma enfermeira), o respeito às tradições nipônicas e às expectativas incubidas às novas gerações, o que mais se destacou e chamou a atenção foi a passagem da tocha para a atleta Naomi Osaka. Aos olhos de alguns, pode parecer somente mais uma cerimônia, sem nada de especial. No entanto, o que tornou esse momento tão singular é o fato de Naomi ser uma mulher com descendência negra e japonesa. Nas palavras da narração da Rede Globo, Naomi é “[…] uma figura que realmente simboliza tudo que essa olimpíada quer passar de mensagem: diversidade e respeito” 1 .
De fato, quando analisada de maneira isolada, a Olimpíada de 2020 esbanjou diversidade com seus vários atletas de diferentes gêneros, sexualidades, costumes, crenças e etnias. No entanto, levando em consideração as relações históricas entre os nipônicos e os povos africanos, é realmente possível considerar a relação entre os japoneses e a comunidade negra harmoniosa e, sobretudo, respeitosa?
Para se pensar nessa indagação, nada mais justo do que refletir sobre algumas contribuições presentes em uma das raras animações japonesas que possui um protagonista negro: Yasuke. Produzido e lançado pela Netflix em 2021, o anime2 faz uma releitura fantasiosa da história de Yasuke, um escravizado moçambicano que aporta nas ilhas nipônicas no ano de 1579 a serviço do jesuíta Alessandro Valignano (1539 à 1606) e que se torna o primeiro samurai estrangeiro do qual se tem notícia.

Durante o contexto histórico no qual o Yasuke da vida real viveu, o estudioso Gary Leupp (1995) afirma que há relatos sobre um número considerável de escravos africanos que chegaram ao Japão em navios europeus, inclusive navios mercantes portugueses. Durante o século XVI, Leupp afirma que a presença de pessoas de pele escura, “dark-skinned people” (LEUPP, 1995, p. 2) gerava admiração, espanto e interesse.
Ainda segundo Leupp (1995), em 1581, moradores de Quioto quebraram a porta de uma residência jesuíta para ver uma pessoa africana, originada de Moçambique. Ouvindo isso, o senhor Oda Nobunaga (1534-1582), um poderoso daimyo3, mandou chamar o homem, e, impressionado com sua cor e aparência, ofereceu dinheiro a Yasuke e ele passou a servir Nobunaga, recebendo então o nome de “Yasuke”. Ele acompanhou Nobunaga em suas batalhas até que o japonês morreu ao ser encurralado por Akechi Mitsuhide (1526-1582) e foi forçado a cometer suicídio, então Yasuke foi capturado, mas depois solto. Não se sabe muito sobre sua vida após esses acontecimentos. O anime idealiza a vida de Yasuke após sua convivência com Nobunaga, e utiliza de toda a liberdade criativa para incluir diversos elementos fantásticos na narrativa, afastando-se de uma perspectiva histórica.
Apesar das possíveis críticas que podem ser direcionadas à obra, não se pode negar a importância dela ao abordar a questão da cor da pele e seu peso nas relações interpessoais no Japão de Oda Nobunaga. Em diversas cenas do anime, é possível perceber descontentamentos com a presença de Yasuke e a sua ascensão dentro das fileiras do daimyo. A título de exemplo, há uma cena em específico em que, durante um jantar de comemoração de mais uma vitória em batalha, um dos generais de Oda questiona na frente de todos os presentes a valia de Yasuke, sugerindo que o samurai não era digno e capaz de ocupar um cargo tão importante por não ser um japonês. Outra cena que vale a pena citar acontece quando o samurai negro propõe uma rendição a um determinado daimyo, mas acaba por receber mais ofensas devido a sua origem.
Ainda que a discriminação retratada na obra esteja relacionada ao fato de Yasuke não ser um japonês, não se pode desconsiderar que tal tratamento também está relacionado à cor de pele do samurai. De acordo com o autor Hiroshi Wagatsuma (1967), muito antes dos primeiros contatos com os europeus ou com os povos africanos, a cor da pele no Japão já estava associada ao padrão de beleza instituído na sociedade nipônica. No período Nara (710 d.C. a 793 d.C.), quanto mais branca uma pessoa fosse (em especial as mulheres), mais atraente ela seria e, assim, teriam uma maior aceitação social. Já a pele escura era vista como com menos prestígio. Ainda segundo o autor, a percepção do que era a pele “branca” começou a se alterar a partir do contato com os europeus e, consequentemente, com a racialização dos povos asiáticos como “amarelos”, o que abalou de certa forma essas concepções. A pele escura, todavia, para além de “feia”, tornou-se um símbolo do mal e do primitivismo, conceitos esses ligados à classificação europeia das raças e que também exerceu influência no Japão.
Voltando para o mundo dos animes, tais concepções sobre a cor podem ser percebidas também na representação de personagens negros nessas obras. Conforme Oliveira (2017), há uma “niponização” de uma parcela de personagens negros que são retratados como exímios lutadores, mestres das artes marcias e seguidores fiéis do código bushido4, como Killer Bee de Naruto e Kaname Tousen de Bleach. Todavia, não se pode dizer o mesmo para outros tantos personagens que são representados de forma pejorativa e que carregam consigo características racistas e estereotipadas sobre os povos africanos e afrodescendentes.
Mr. Popo de Dragon Ball Z e o Jynx de Pokémon são exemplos de representações caricatas e estereotipadas de pessoas negras que aparecem nas animações desde as décadas de 80 e 90. Na atualidade, a irmã Krone de The Promised Neverland se encaixa no estereótipo de “Mammy”, uma mulher negra que trabalha na casa de pessoas brancas como ama de leite e empregada.

para o tom da pele, os tamanhos dos lábios e o formato dos corpos.
Fonte: Google Images.
Mais uma característica comum a todos os personagens citados é a baixa presença dos mesmos nessas obras e o pouco impacto narrativo que eles possuem. Após analisar Kuroko’s Basketball e ACCA, Anne Lei (2018) afirma que, em ambos os casos, enquanto personagens brancos possuem uma importância significativa dentro das obras, aos negros são relegados papéis secundários, que não possuem um peso narrativo expressivo e que não têm seus plots desenvolvidos. Dessa forma, pode-se dizer que Yasuke acerta ao apostar num protagonista negro que não é representado de maneira caricata ou racista, dando um passo muito importante para a representação de pessoas negras nos animes.
A questão do racismo no Japão não é uma discussão facilmente encontrada na academia brasileira – e fora dela – e que necessita ser debatida, principalmente por sua complexidade, já que não se pode levar para o povo japonês os mesmos padrões e olhares que se tem no ocidente acerca do racismo, sem levar em conta a história nipônica, pois, desde o princípio, a interação entre japoneses e africanos foi muito diferente da que se deu entre esses com os europeus.
Todavia, hoje, o racismo deve ser problematizado constantemente em qualquer lugar. O fato da tenista Naomi Osaka ter recebido o lugar de honra e atenção ao acender a pira olímpica e o lançamento do anime Yasuke são dois pontos imprescindíveis que podem indicar, talvez, que o espaço para essa conversa esteja sendo gradativamente ampliado, possibilitando novas reflexões e perspectivas que podem resultar em ações concretas, governamentais ou populares, que incentivem um ambiente cada vez mais favorável à diversidade.
A intenção deste trabalho foi justamente expor alguns dos elementos que envolvem a história entre pessoas negras e os nipônicos e abordar um pouco dessa complexidade. Entretanto, essa é uma discussão que ainda pode ser muito ampliada e é necessário que seja feita de forma sensível e meticulosa, tendo em vista todos os povos e fatores envolvidos.
*Este artigo é o segundo de uma série de três textos que abordam diferentes aspectos da animação Yasuke.
NOTAS DE RODAPÉ:
1 Tenista Naomi Osaka acende a pira olímpica de Tóquio 2020. Rede Globo, 23 de Jul. de 2021. 1 vídeo (10 min). Disponível em <https://globoplay.globo.com/v/9711576/>. Acesso em 14 de Out. de 2021.
2 Animação ou cartoon japonês.
3 Pessoas que possuíam território e grande poder político.
4 “Caminho do Guerreiro”. Uma espécie de código de conduta e ensinamentos que orientam moralmente os samurais.
REFERÊNCIAS:
LEI, Anne. Constructing Race in Anime. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Honors Baccalaureate of Science in Computer Science), Oregon State University, Oregon, 2018.
LEUPP, Gary. Images of black people in late medieval and early modern Japan 1543–1900. Japan Forum, [s. l.], v. 7, n. 1, p. 1-13, abr. 1995.
Tenista Naomi Osaka acende a pira olímpica de Tóquio 2020. Rede Globo, 23 de Jul. de 2021. 1 vídeo (10 min). Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9711576/. Acesso em 14 de Out. de 2021.
OLIVEIRA, Felipe Adriano Alves de. O Japão e o olhar sobre o “outro”: o negro em perspectiva. In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria [orgs.] Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017.
WAGATSUMA, Hiroshi. The Social Perception of Skin Color in Japan. Daedalus, Massachusetts, v. 96, n. 2, p. 407-443, mar./jun. 1967.
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