Giovanna Gomes Cardoso de Lima
Relações Internacionais – UFS
Aviso! As obras de mangá aqui citadas são recomendadas para maiores de 18 anos e podem conter temas sensíveis para algumas pessoas.
As narrativas sobrenaturais oriundas dos continentes que vão além da perspectiva imperialista norte-eurocentrada predominante, por muitas vezes, são colocadas sob a sombra dos ditos “grandes clássicos” centrados na Europa. Desta forma, torna-se difícil o acesso às narrativas folclóricas destes países, em especial, se tratando da escrita e oralidade de povos asiáticos e africanos, seja devido ao não incentivo na tradução e disseminação destas obras. Sendo assim, acabamos centrando nosso pensamento acerca do sobrenatural sob uma perspectiva colonialista que classifica as narrativas sobrenaturais de outros povos enquanto algo exclusivamente “lendário”. É necessário pontuar que, a classificação majoritariamente utilizada pelos clássicos, cuja origem se dá no continente europeu, não abarca a formação do pensamento de localidades originalmente pertencentes aos povos originários que possuem culturas e trajetórias particulares. Desta forma, o “lendário” em alguns casos, pode ser sagrado para tais povos.
Vale ressaltar que, o sobrenatural nasce junto a construção de pensamento de cada povo como uma forma de justificar os fenômenos que nos cercam através da relação entre o homem e o mundo espiritual. Ferreira (2014) reforça que, na atualidade, o sobrenatural pode ser compreendido como imaginário e fantasioso, contudo, no período Edo, o natural e o sobrenatural eram algo unificado e visto como real e natural (FERREIRA apud BARROW, 2014). Estas histórias foram perpetuadas não somente através da oralidade, da escrita e das artes visuais, mas, principalmente, graças ao teatro tradicional japonês, tendo como grandes exemplos o Kabuki e o Noh, sendo o último performado desde o século 14.
Dentre as criaturas místicas mais famosas do imaginário popular japonês, é perceptível notar a variedade de seres do sexo feminino cujas histórias carregam a presença quase contínua de vingança e castigos pelas vidas devassas e crueldades cometidas. As aterrorizantes mulheres possuem histórias diversas e marcam a formação do imaginário sobrenatural desde o período Edo e até os dias atuais com as novas lendas urbanas e personagens oriundos de obras cinematográficas mundialmente famosas.
As figuras lendárias mais conhecidas do imaginário nipônico permeiam a construção de obras cinematográficas desde os anos 60, tendo como marco o lançamento do emblemático longa de terror Onibaba – A Mulher Demônio (1964), do diretor Kaneto Shindô, que conta a história de uma uma viúva e sua sogra que vivem dolorosamente tentando sobreviver a guerra civil durante o Japão Feudal. O título desta obra de terror histórico está diretamente ligada a uma lenda sobre demônios que são vistos como mulheres extremamente velhas e rancorosas, de feições horripilantes (Marangoni et al., 2021).
Posteriormente, a consolidação do terror japonês através do cinema veio na década de 1990, com o lançamento de Ringu – O Chamado (1998), de Hideo Nakata, que nasce como uma adaptação da obra literária Ring (1991) do romancista Koji Suzuki. A história narra a investigação de uma repórter acerca de uma maldição que envolve o ato de assistir uma fita cassete com imagens misteriosas de uma mulher de longos cabelos negros, ao final, a fita leva suas vítimas a morte após uma ligação misteriosa. Ringu consolidou a personagem Sadako como uma figura icônica do terror ao ponto de gerar um remake norte-americano e inúmeras sequências de filmes recentes, como por exemplo, o lançamento de Sadako – O Capítulo Final (2019), do mesmo diretor da primeira adaptação nipônica. A figura vingativa de Sadako não se distancia do perfil de outras criaturas sobrenaturais clássicas que compõem o pensamento folclórico japonês, podemos citar as Yuki-onna (雪女), espíritos que, segundo a lenda, cantam para seduzir os homens até fazer com que eles se percam em meio a nevascas e morram congelados.
A valorização das narrativas locais se dá pela utilização massiva destas figuras clássicas citadas anteriormente nas mais diversas formas de se fazer arte e produtos de consumo. No caso dos mangás, existe uma diversidade de gêneros nos quais estas personagens são retratadas, indo para além das representações clássicas do terror e suas respectivas variações. Tendo como exemplo, Kuchisake ga Saketemo Kimi ni wa (口か裂けても君には) (2018) de Kajimoto Akari, um mangá do gênero romântico que se inspira na lenda urbana denominada Kuchisake-onna (口裂け女) para a construção da protagonista Miroku, a mulher da boca cortada. Na trama, Miroku precisa se casar com Kouichi, um estudante do ensino médio cuja família é responsável por manter superstições há gerações. A razão para o casamento, inicialmente indesejado pela protagonista, é a necessidade de manter a própria existência, tendo em vista que na sociedade atual, as pessoas já não acreditam mais em histórias sobrenaturais.
Entretanto, a utilização destas figuras mitológicas não representa uma falta de interesse do público nas produções J-Horror, apenas serve para destacar o quanto estas narrativas antigas ainda permeiam o imaginário e despertam o interesse de públicos diversos ao ponto de alcançar aqueles que não apreciam o gênero do terror. O Japão ainda é consagrado internacionalmente devido as produções aterrorizantes que seguem sendo cada vez mais apreciadas por suas características únicas. Para Marangoni et al (2021) um dos pontos que torna o horror japonês diferente do modelo ocidental é seu afastamento das representações ocidentais predominantes do gênero. No Japão, o gênero de terror se concentra principalmente na construção de tensão, que inclui horror psicológico e sobrenatural, incluindo fantasmas, exorcismos e possessões (Marangoni et al., 2021). As produções de terror japonês, assim como outras representações deste gênero nos demais países do leste-asiático, apresentam características mais sutis, que focam na ambientação e na tensão por ela criada (Marangoni et al., 2021).
A presença de antagonistas femininas em narrativas clássicas do terror japonês são marcadas pelo sentimento de vingança, em especial, movido por dores causadas por pressões características do patriarcado japonês, desde os contos mitológicos até películas cinematográficas e obras de mangá. Tomie de Junji Ito e Suicide Club de Usamaru Furuya são exemplos clássicos da representação destas figuras femininas enquanto agentes do caos por consequência dos fenômenos sociais que as levaram à morte e, posteriormente, ao desejo insaciável por vingança.
O mangaká Junji Ito é considerado o mestre do terror grotesco por representar em suas obras cujas construções imagéticas e narrativas possuem ligação direta com obsessões e a fomentação de um sentimento de estranheza aos olhos do leitor (ANTUNES; FILHO, 2019) através de personagens que definham até se entregarem completamente à loucura. O autor, que desenhava e escrevia mangás como um simples passatempo, iniciou a carreira em 1987 ao enviar um conto para o Monthly Halloween, que veio a lhe garantir uma menção honrosa no Kazuo Umezu Prize, o conto em questão era nada mais, nada menos do que os primeiros fragmentos do que veio a ser Tomie (富江) (1987), sua eterna e mais famosa obra-prima.
Tomie Kawakami, a mulher que deu início ao primeiro de muitos outros fragmentos do horror do autor, é uma figura de beleza estonteante e inigualável que possui uma personalidade questionável baseada em seus desejos e vontades pessoais. Tomie é apresentada no primeiro conto como uma estudante de ensino médio que faleceu de forma misteriosa após desaparecer em uma viagem escolar. A figura da personagem reaparece misteriosamente mesmo após o funeral e passa a atormentar seus colegas de classe, mais tarde revelados como seus assassinos. A morte grotesca da protagonista se dá após ser vista por seu namorado revelando tê-lo traído com o professor da turma, durante a discussão, Tomie cai de um pequeno penhasco e sua suposta “morte” leva os alunos e o professor a tentarem ocultar o corpo ao esquartejá-la viva em pedaços iguais para cada estudante, sendo assim, coube a cada um descartar um pedaço de Tomie para que o assassinato grotesco não fosse descoberto.
A existência de Tomie é inexplicável, assim como suas diversas formas de matar, torturar e atormentar suas vítimas, não importa quantas vezes tentem matá-la, ela sempre retorna cada vez mais bela, sedutora e macabra. O inegável fato de que a maioria das pessoas cujo destino é selado pela beleza cruel de Tomie são homens, ela os seduz e os tortura até ser morta e matá-los de forma grotesca, levando-os a loucura.
Outra figura feminina aterrorizante e clássica dos mangás J-Horror é Mitsuko, cuja existência é ainda mais abstrata do que a de Tomie. As personagens de Usamaru Furuya, são as líderes que guiaram o massacre suicida de Jisatsu Circle (自殺サークル) ou Suicide Club (2006), mangá escrito com base no filme homônimo do diretor Sion Sono. Apesar de iniciar com a cena chocante e emblemática do suicídio de 54 alunas do ensino médio que saltam juntas e sorridentes no trilho do trem da estação de Shinjuku, localizada em Tóquio, o roteiro do mangá de Furuya segue rumos completamente diferentes do que o filme apresenta. A onda amedrontadora de suicídios que afeta, em especial, estudantes mulheres do ensino médio torna-se alvo de diversos olhares e investigações, mas a personagem Saya Hagiwara parece atrair mais olhares, não somente por ser a única sobrevivente do suicídio coletivo da estação de Shinjuku, mas por tornar-se a mais nova líder do clube suicída.
A dura trajetória de Saya é narrada e acompanhada por sua amiga Kyoko do início ao fim do mangá de volume único. Inicialmente, Kyoko revela que sua relação com Saya inicia a partir da troca de um caderno no qual ambas desabafavam e expressavam seus sentimentos e pensamentos mais profundos desde o ensino fundamental. Contudo, a vida de Saya vira de cabeça para baixo durante o colegial, logo após problemas financeiros na família ocasionados após a internação do pai da garota devido a um colapso mental. Com apenas 14 (quatorze) anos, Saya vira alvo da prostituição infantil e seu estado mental se agrava drásticamente, ao ponto de desenvolver um comportamento autodestrutivo que a levou a conhecer a segunda célula do clube suicída guiado por uma garota que se autodenomina Mitsuko.
Após sobreviver ao incidente na estação de Shinjuku, Saya torna-se a nova líder deste clube e adota o nome da falecida Mitsuko ao se transformar em uma espécie de figura divina que absorve as dores e sofrimentos das garotas que se juntam a ela no clube. Este fenômeno sobrenatural e inexplicável atravessa a trama até o momento em que o clube da nova Mitsuko decide realizar seu ato final após tatuar um símbolo misterioso em suas orelhas. Kyoko, por sua vez, é amaldiçoada por tentar descobrir a verdade por trás do terrível clube suicida ao ser condenada a participar do último ato do clube contra a própria vontade. O mangá se encerra como iniciou, com o suicídio coletivo das estudantes e o nascimento da nova Mitsuko, a única sobrevivente, Kyoko.
Tecendo um paralelo entre a sedutora Tomie e as incontáveis e amaldiçoadas Mitsukos, é possível perceber um um certo padrão em meio às inúmeras diferenças que as cercam, são mulheres vítimas de uma sociedade patriarcal dominada por figuras exclusivamente masculinas que julgam ser donas dos corpos e vidas das mulheres. É importante destacar que, dominação do sexo masculino não é um fenômeno exclusivo do Japão, tendo em vista que a formação das sociedades modernas se dá através de relações de poder nos mais diversos países do globo.
As figuras femininas são colocadas enquanto antagonistas vingativas em histórias de terror desde a antiguidade e por diversos povos, este fenômeno por sua vez, pode ser pensado a partir destas relações de poder impostas. A sociedade adoecida de Suicide Club (2006) é a mesma sociedade que Junji Ito retrata não somente em Tomie (1987), como também em outras obras que compõem seus fragmentos do horror.
Deste modo, devemos levar em consideração a importância das narrativas sobrenaturais e de horror que construíram o fenômeno do J-Horror e suas mais diversas subcategorias para além do medo e do absurdo. As histórias que compreendem perfis dramáticos e, até mesmo cômicos podem ser facilmente colocadas enquanto ferramentas de análise no campo das ciências, desde os grandes clássicos antigos, até mesmo os mais recentes filmes, animes e mangás.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Brenda Stephanie de Araújo; FILHO, Ilto Da Cruz Pires. UMA ESTÉTICA DO GROTESCO: AS OBSESSÕES E OS “ESTRANHAMENTOS” NA OBRA UZUMAKI, DE JUNJI ITO. 6as Jornadas de Histórias em Quadrinhos, São Paulo, ano 2019, p. 1-13, 21 ago. 2019. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/6asjornadas/q_educacao/brenda_antunes.pdf. Acesso em: 7 fev. 2022.
FERREIRA, Cláudio Augusto. Personagens folclóricos, deuses, fantasmas e História extraordinária de Yotsuya em Tôkaidô: o sobrenatural na cultura japonesa. 2014. Dissertação (Mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japonesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, University of São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.8.2014.tde-06012015-180330. Acesso em: 2022-02-10.
JUNJI, Ito. Tomie. 1. ed. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2021. 376 p. v. 1.
JUNJI, Ito. Tomie. 1. ed. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2021. 376 p. v. 2.
MARANGONI , Amanda; VIEIRA, Júnior. Terror japonês e os chamados do J-Horror. Jornalismo Júnior, São Paulo, ano 2021, 4 set. 2021. Disponível em: http://jornalismojunior.com.br/terror-japones-e-os-chamados-do-j-horror/. Acesso em: 8 fev. 2022.
O PACTO – SUICIDE CLUB. Direção: Sion Sono. Produção: Seiya Kawamata. Intérprete: Ryo Ishibashi; Masatoshi Nagase; Akaji Maro; Saya Hagiwara; Yoko Kamon; Rolly; Hideo Sako; Takashi Nomura; Tamao Satou; Mai Hosho; Kimiko Yo; Mika Kikuchi; So Matsumoto. Roteiro: Sion Sono. Fotografia de Masahiro Ônaga. Gravação de Kazuto Sato. Japão: [s. n.], 2002.
USAMARU, Furuya. Suicide Club. 1. ed. São Paulo: NEWPop, 2021. 168 p. v. único.
XAVIER, Gabriela. Suicide Club: um mangá denso, tenso e infelizmente atual. Blog Gabi Xavier, São Paulo, 30 nov. 2019. Disponível em: https://gabixavier.com.br/suicide-club-review/. Acesso em: 8 fev. 2022.
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