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NOTÍCIA | Enterrar a tecnologia: as sementes do futuro na China

O Partido recorre à inovação para aumentar a produtividade agrícola e impulsiona o desenvolvimento de produtos transgênicos

Fonte: El País

Por Jaime Santirso

Beijing, 06 de março

Na última semana, a China conduziu a reunião da Assembleia Popular Nacional (APN) e do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), as chamadas Duas Sessões (两会 ), em cujo âmbito houve a discussão do 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico do país.

O instrumento é um dos documentos base para compreender as bases das políticas e atos normativos da China entre 2021 e 2025, e, entre os assuntos destacados, esteve a segurança alimentar à luz das discussões em torno da produção transgênica e da modernização do campo.

No início de 2021, a agência de notícias estatal Xinhua havia publicado o documento de trabalho que serviria de base para as questões cruciais neste debate, uma Opinião Conjunta do Conselho de Estado e do Comitê Central do Partido Comunista da China acerca da Promoção da Revitalização do Campo e Aceleração da Modernização da Agricultura e do Campo (中共中央国务院关于全面推进乡村振兴加快农业农村现代化的意见).

Além de ressaltar a importância desses temas para a erradicação da pobreza – uma das diretrizes chave para a política econômica chinesa dos últimos anos –, o documento trouxe novamente à tona o papel das pesquisas e normatização dos transgênicos no país. Enquanto algumas questões mais consensuais, como o enfrentamento ao desperdício de alimentos, já vinham sido assimiladas nos níveis governamentais e sociais, com o lançamento, por exemplo, da campanha “limpe seu prato” pelo presidente Xi Jinping em agosto de 2020 (关盘行动), o cultivo de grãos geneticamente modificados ainda e incipiente e levanta opiniões divergentes no seu papel e grau de importância para a segurança alimentar.

Vale observar que o chamado “Documento Um” dá continuidade à tendência de expansão de pesquisas em tecnologia voltada para o cultivo de grãos geneticamente modificados, já sinalizada em novembro de 2020, com o lançamento das Propostas do Comitê Central do Partido Comunista da China para a Formulação do Décimo Quarto Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e as Metas de Longo Prazo para 2035 (中共中央关于制定国民经济和社会发展第十四个五年规划和二〇三五年远景目标的建议).

A notícia é do El País, traduzida do castelhano pela Curadoria de Segurança Alimentar e Estrangeirização de Terras do IEÁSIA.

Mao Zedong apenas triunfou quando conseguiu conduzir a Revolução a partir do campo, e não das cidades. Foi também na zona rural que germinou o milagre econômico da China contemporânea, o dia em que os agricultores de uma aldeia rural de Anhui concordaram, em segredo, em administrar individualmente as fazendas comunitárias. No século XXI, o futuro do gigante asiático aponta mais uma vez para o campo, onde o Partido pretende agora aplicar o vigor de sua tecnologia.

Diversos fatores confluem para esta estratégia. As mudanças na cadeia de abastecimento causadas pela pandemia e pela peste suína – que dizimou metade dos porcos do país – trouxeram novamente à tona o debate acerca da auto-suficiência alimentar, um conceito profundamente enraizado na tradição chinesa e na legitimidade de seus governantes. Isto se enquadra, além disso, na aspiração de dominar tecnologias de ponta, as quais, em sua aplicação à agricultura, podem impulsionar a produtividade e revitalizar um setor que, apesar de representar menos de 9% do PIB, ainda emprega um terço da população ativa: quase 300 milhões de pessoas.

O conteúdo do Documento Número 1 é prova deste ímpeto renovado. O documento do governo recebe este nome tão genérico porque é o primeiro a ser emitido pelas autoridades após o Ano Novo Lunar, e a tradição política dita que deve ser sobre a agricultura. Seu título completo poderia ser traduzido como Opiniões do Comitê Central do Conselho de Estado sobre a Promoção Integral da Revitalização Rural e a Aceleração da Modernização da Agricultura e das Áreas Rurais. A novidade não está em sua extensão, mas na ênfase na segurança alimentar e em sua interseção com a tecnologia. Seus objetivos, explicitados em dois de seus títulos, são “acelerar a modernização da agricultura” e “concretizar a conexão efetiva entre (…) a redução da pobreza e a revitalização rural”.

Esta última menção não é por acaso. Na semana passada, Xi Jinping protagonizou um evento televisivo de Beijing, no qual proclamou “vitória completa” sobre a pobreza extrema. Nos últimos oito anos, esta campanha governamental conseguiu aumentar, de acordo com números oficiais, a renda anual de quase 100 milhões de pessoas para valores superiores a 4 mil Yuanes (516 euros). “A erradicação da pobreza extrema é outra conquista extraordinária da humanidade, digna da memória histórica. É uma grande honra que pertence ao Partido Comunista e ao povo”, ponderou Xi a respeito do marco que sedimenta sua autoridade e liderança, de um crescente personalismo.

Um dia antes, o Diário do Povo publicou um ensaio de 22.500 caracteres em sua primeira página, um dos mais longos de sua história, sob o slogan Um salto histórico: o início de uma nova luta. Esta nova luta se chama xiangcun zhexing, a campanha de revitalização rural. “O governo quer garantir que não haja retorno à pobreza, que os esforços sejam consolidados e sustentáveis, que se traduzam em empregos produtivos, agricultura eficiente e melhor conectividade para que as áreas rurais participem da economia do país”, explica Even Rogers Pay, analista da empresa de consultoria Trivium China, especializada em agrotecnologia. Este novo esforço será consubstanciado no 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento, que os órgãos legislativos estão discutindo nestes dias na sessão anual do Congresso Nacional do Povo.

A nova iniciativa também visa a incentivar o consumo rural, a fim de dar dinamismo a um PIB ainda forte, mas em desaceleração. Nesse âmbito, as prioridades dos gigantes da tecnologia estão alinhadas às do Estado. A JD – a segunda maior empresa de comércio eletrônico do país – por exemplo, oferece a possibilidade de comprar verduras e hortaliças que ainda não foram colhidas. “Os consumidores completam a transação através da plataforma digital e instantaneamente os agricultores recolhem os produtos selecionados do campo, o que ajuda a reduzir os custos com armazenamento e o desperdício”, descreve Yu Zheng, presidente da equipe de cidades inteligentes da JD. “Menos de quatro horas depois, eles chegam aos pontos de entrega, o que se traduz em um frescor máximo para os consumidores. É uma situação ideal para todas as partes”.

Sementes, grãos e pratos chineses

Com a tecnologia como força motriz, uma das revoluções a surgir é a das sementes transgênicas. Os últimos gestos do governo, no entanto, apontam para um impulso iminente para sua liberalização. O ministro da Agricultura, Tan Renjian, pronunciou no mês passado algumas palavras que se tornaram famosas e indicativas do momento chave pelo qual o setor está passando. “As sementes são os microchips da agricultura”, resumiu ele. Os semicondutores são um dos pontos-chave na corrida pela supremacia tecnológica. As sementes não ficam atrás em nível de importância. A China é o segundo maior mercado do mundo, mas sua capacidade de produção está muito atrás da dos Estados Unidos, um detalhe que, aos olhos do governo, poderia ser uma fraqueza.

Diante de “um ambiente externo” que está experimentando um “acentuado aumento de incerteza e instabilidade”, o ministro declarou que “não podemos nos dar ao luxo de ser complacentes nem por um momento, mas devemos fazer todo o possível para aumentar a segurança (…) e produzir e armazenar mais grãos”. Em uma entrevista para a agência oficial de notícias Xinhua no início de janeiro, Tan foi ainda mais claro: “Os pratos chineses devem ser servidos com grãos chineses, e os grãos chineses devem ser cultivados com sementes chinesas”.

“A situação do desenvolvimento agrícola adquiriu protagonismo na agenda política”, acrescenta Pay, “o processo está em andamento há algum tempo, mas tornou-se especialmente evidente em dezembro passado”. Nessa época, a Conferência Central de Trabalho Econômico estabeleceu a indústria de sementes como uma das oito prioridades econômicas para o próximo ano, uma proeminência sem precedentes. O comunicado da agência enfatizou que “devemos respeitar a ciência e realizar uma supervisão rigorosa para desenvolver a industrialização das aplicações de cultivo biológico de forma ordenada”, uma frase interpretada como um aceno para a biotecnologia vegetal e a manipulação genética. O texto, por outro lado, também se comprometeu a preservar 1,8 bilhões de mu (equivalente a 120 milhões de hectares, uma quantidade semelhante à área combinada de Portugal, Espanha e França) em terras cultiváveis.

Uma semana depois, uma mensagem semelhante veio de Xi, que enfatizou a importância de alcançar autonomia em matéria de tecnologia agrícola, apelando para uma “batalha para promover uma reviravolta na indústria de sementes”. “Mais de um bilhão de pessoas precisam comer. Esta é a principal situação nacional na China. As boas sementes desempenham um papel fundamental na promoção da produção de alimentos. Precisamos impulsionar resolutamente a indústria de sementes de nosso país”, ele havia dito já em abril de 2018.

As autoridades competentes não tardaram em se pôr em ação. Em meados de janeiro, o uso de duas novas sementes geneticamente modificadas, de milho e soja resistentes a insetos e herbicidas, respectivamente, da empresa chinesa Dabeinong, foram aprovadas para uso, bem como a importação de duas outras variantes de milho produzidas pela Bayer e Syngenta. As licenças anteriores datavam do final de 2019, as quais, por sua vez, tinham sido as primeiras em uma década.

“A China foi um dos primeiros países a se aventurar nesta indústria. Suas pesquisas datam dos anos 90, quando sementes de mamão e algodão GM foram comercializadas”, diz Pay. Entretanto, “as autoridades não quiseram alimentar a desconfiança dos consumidores após vários escândalos de segurança alimentar [não relacionados a produtos GM, como o leite adulterado que afetou quase 300.000 bebês em 2008], o que, juntamente com as preocupações da indústria doméstica com a concorrência internacional, resultou em uma abordagem legislativa muito conservadora nas duas décadas que se seguiram.

A suspeita ainda permanece. Uma pesquisa publicada em 2018 pela revista científica Nature demonstrou que, de uma amostra de 2.000 consumidores chineses, quase metade se opunha aos alimentos geneticamente modificados, enquanto apenas um em cada dez expressou uma opinião positiva sobre o assunto. É inevitável: o futuro sempre gera desconfianças. Mesmo que, como em tantas outras vezes, venha do campo.

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